Adélia Prado – Qualquer coisa que brilhe

São eternos esta oficina mecânica,
estes carros, a luz branca do sol.
este momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, pois não existe.
Ainda que se mova, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, é tudo muito
eterno,
só choramos por sermos condizentes.
Necessito pouco de tudo,
já é plena a vida,
tanto mais que descubro:
Deus espera de mim o pior de mim,
num cálice de ouro o chorume do lixo
que sempre trouxe às costas
desde que abri os olhos,
bebi meu primeiro leite
no peito envergonhado de minha mãe.
Ofereço cantando, estou nua,
os braços erguidos de contentamento.
Sou deste lugar,
com tesoura cega cortei aqui meu cabelo,
sedenta de ouro esburaquei o chão
atrás do que brilhasse.
Pois o encontro agora escuro e fosco
no dia radioso é único e não cintila.
Veio de Vós. A vida. Do opaco. Do profundo de Vós.
Abba! Abba! Aceita o que me enoja,
gosma que me ocultou Teu rosto.
Vivo do que não é meu.
Toma pois minha vida
e não me prives mais
desta nova inocência que me infundes.

Adélia Prado, Poesia Reunida