Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Meu amigo

Meu amigo,

quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos

com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol

mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo

não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça

e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra

(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal

um poema não é mais
do que uma pedra que grita

risque por favor
esta palavra

Ana Martins Marques, Risque esta palavra

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