Meu amigo,
quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos
com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol
mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo
não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça
e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra
(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal
um poema não é mais
do que uma pedra que grita
risque por favor
esta palavra
Ana Martins Marques, Risque esta palavra