Sabe-se que um deus só vem porque quer
e que é capaz de desaparecer
a seu bel-prazer, por mero capricho.
Nisso ele se assemelha mais a um bicho
selvagem, feito serpente ou veado,
do que a gente. Uns são intempestivos.
É no momento menos indicado
que nos capturam e mantêm cativos.
Assim é o Amor, por exemplo. Não
há quem não reconheça a divindade
de tal deus. Não: os próprios cristãos dão
a mão à palmatória e têm saudade
do realismo do mundo pagão
quando o vêem chegar como quem não quer
nada e ofuscar tudo. Outros são
diferentes. Todos vêm por prazer,
isso é claro mas, por exemplo, o Sono
não deixa de abraçar-nos todo dia
enquanto somos jovens: dir-se-ia
ser nosso escravo e não suave dono.
Mas isso não se deve nem pensar
pois se ele ouvir o nosso pensamento
e resolver provar-nos a contento
ser mesmo deus, desaparecerá,
pois que ele é deus mostra-o nem tanto o fato
de que vem sem ser chamado e escraviza,
em teatros, aulas, ônibus, vigílias,
o desejo que almeja dominá-lo
quanto a própria insônia, teofania
negativa do Sono, quando somem
as doces nuvens e as torres macias
do príncipe dos deuses e dos homens
e não se abrem as águas da lagoa
ou os portões de chifre ou de marfim
e nossa imaginação se esboroa
em prosa e a noite cansa até o fim.
Não se iludam. Nem o mais poderoso
dos soporíferos substituiria
ver abolirem-se as categorias
pela espontânea ação de um deus gasoso.
Tais deuses só na velhice sabemos
o que são. O jovem nem desconfia
ser divino o próprio Tesão ou mesmo,
tremo só de lembrar, a Poesia.
Antonio Cicero, Guardar
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