A noite terminou. Tu e eu, nós estivemos juntos
a derrubar sombras, a encher a casa de vozes e
os copos de conhaque. A enrolar nos tapetes
recordações estranhas, cheias de veludo, de
casas demolidas, de pó, de liquens, de ferrugem.
Tu e eu em muitas páginas atrás tínhamos outro colorido,
outro peso, outra respiração. Havia apitos de trens
cortando túneis e passagens poeirentas de vacas.
Havia hotéis suburbanos e lençóis cheirando a úmido e
lilases.
Tu e eu estivemos juntos a evocar fantasmas
cavernas, grades, vazios, cicatrizes, papoulas, muros,
sinais, doçuras, estações,
enquanto o ar nos vigiava com a impaciência do tempo.
Juntos a repartir coisas fermentadas, despojos
dos náufragos na história de um porto.
Juntos ouvindo a pulsação das veias da parede
onde corre um sangue silencioso,
as paredes cobertas de papel e manchas e rachaduras e
marcas de mãos e marcas de goteiras.
Juntos trançando um fio interminável
espantando os espíritos da noite que vão enlouquecendo
as coisas
espantando os espíritos como se espantam moscas.
Bruna Lombardi, Poesia Reunida
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