– As voragens da carne
conheço-as muito bem
e as confusões do coração também,
mas não posso enganar-me:
se me ficaram os meios
já não tenho os motivos.
Tens dois olhos altivos,
mas duros, muito duros porque cheios
de coisas mortas, dessa inútil carga
que te legou aquela noite amarga
em que uma vida jovem foi perdida.
Admito que existe
esse instante suspenso
entre o nada e o que foi aquela vida,
mas olha-o: é a escuridão que o traz, que insiste
em não soltar as folhas
que o vento sacudiu e não levou
aquele dia,
mas uma tarde qualquer afinal levaria.
No entanto, quando olhas
agora uma vez mais a luz pintar
os muros desta cela, esta luz fria,
rápida como o voo
de uma gaivota branca como o lenço
que um dia fez Desdêmona chorar,
em teu olhar
há como um fim de pesadelo, intenso,
eu sei, mas de que um dia,
um dia, quase manso
como o falcão viúvo e o último ganso,
tu também, meu irmão, vais acordar.
Bruno Tolentino, A balada do cárcere