tantas vezes eu me sinto passageiro clandestino
do meu corpo, como embarcado num vagão
que corta a cidade desde o subúrbio, onde moram
ou devem morar poetas, amantes e demais revolucionários,
segundo Platão, embarcado nessa viagem, nessa origem
periférica, longínqua, estrangeira, trazendo sem permissão
sotaques, palavras e vontades que se realizam ocultamente
nas minhas mãos, por intermédio delas, quando acaricio seu corpo
com meu corpo, digitando música no teclado das suas
costelas ou desenhando em sua pele as imagens proibidas,
secretas, bastardas, do poema pelo qual você pergunta
há tanto tempo, cadê meu poema, você disse tantas
vezes, ou talvez você nunca tenha pedido, talvez tenha sido eu a
ter visto um poema saltar ilícito da sua boca para sobrevoá-la, dissimulado, um poema enodado em seus cabelos
há tanto tempo, um poema ainda trêmulo, sondando espaço e
tempo em nosso olhar mútuo, na órbita da nossa
vida e em nosso espaço e tempo, esse tempo que
nos percorre, mas também o tempo que se amontoa
e nos dá as tramas que se amarram entre nós a contrapelo
de todo princípio para infringir vigências e efeitos dessa
viagem em que sou passageiro, como uma folha ao vento,
mas que vigora em mim como um contrato sem promessa, sem
celebração, a não ser o próprio ato que escapa de si mesmo, o
próprio delito de lhe escrever essas palavras com a luz dos meus
olhos
Caio Meira, Romance
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