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Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Flores do mais

ana cristina cesar

Devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

Ana Cristina Cesar, Inéditos e dispersos

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Fagulha

ana cristina cesar

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina Cesar, A teus pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Flores do mais

ana cristina cesar

devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações
construídas pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

 

Ana Cristina Cesar, 26 poetas hoje

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Casablanca

ana cristina cesar

Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardías…

Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema…

As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
madrugada feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

 

Ana Cristina Cesar, A teus pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cesar Cristina – Esvoaça… esvoaça…

ana cristina cesar

É como a vela que se apaga,
E a fumaça sobe e se atenua.
É o amor fraco que se apaga,
Não adiantam poemas para a lua.

Sofre o homem, o amor acaba
E a doce influência esvoaça
Como o fio adelgaçado
De fina e translúcida fumaça

Esvoaça, esvoaça…
Atenua o amor,
Atenua a fumaça.

Para que tanta dor?
E o amor que vai sumindo,

Adelgaça, esvoaça, esvoaça…

 

Ana Cesar Cristina, Poética

Ana Cristina Cesar

Ana Cesar Cristina – A terceira noite

ana cristina cesar

Era uma terceira noite.
O giroscópio girava girando.
Minha gravata balouçava no ar.
Meus guizos tocavam tocando.
Meu coração batia batendo.

Subi as escadas da noite.
Desci as escadas do dia.
Fui descendo para cima,
E subindo para baixo!

Mas num dado momento,
Eis que sibila o vento
As escadas se corrompem
O quarto dia despenca
E a nova noite aqui fica

 

Ana Cesar Cristina, Poética

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Sexta-feira da paixão

ana cristina cesar

Alguns estão dormindo de tarde,
outros subiram para Petrópolis como meninos tristes.
Vou bater à porta do meu amigo,
que tem uma pequena mulher que sorri muito e fala pouco,
como uma japonesa.
Chego meio prosa, sombras no rosto.
Não tenho muitas palavras como pensei.
“Coisa ínfima, quero ficar perto de ti.”
Te levo para a avenida Atlântica beber de tarde e digo: está lindo,
mas não sei ser engraçada.
“A crueldade é seu diadema…”
O meu embaraço te deseja, quem não vê?
Consolatriz cheia das vontades.
Caixa de areia com estrelas de papel.
Balanço, muito devagar.
Olhos desencontrados: e se eu te disser, te adoro,
e te raptar não sei como dessa aflição de março,
bem que aproveitando maus bocados para sair do
esconderijo num relance?
Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?
Beware: esta compaixão é
é paixão.

 

Ana Cristina Cesar, Poética 

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Travelling

ana cristina cesar

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu
Lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirma, “Perder
É mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”, dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. “É perigoso”,
ria a Carolina perita no papel kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas as três bebi um pouco
sem notar
como quem procura um fio.
Nunca mais te disse
uma palavra, repito, preciso alto,
tarde da noite,
enquanto desalinho
sem luxo
sede
agulhadas
os pareceres que ouvi num dia interminável: sem parecer mais com a luz ofuscante desse
mesmo dia interminável

 

Ana Cristina Cesar, A teus pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Que desliza

ana cristina cesar

Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouco negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão.

 

Ana Cristina Cesar, A teus pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Lá fora

ana cristina cesar

há um amor
que entra de férias.
Há um embaçamento
de minhas agulhas
nítidas diante
dessa boa bisca
de mulher.
Há um placar
visível em altas horas,
pela persiana deste hotel,
fatal, que diz: fiado,
só depois de amanhã
e olhe lá,
onde a minha lâmina
cortante,
sofrendo de súbita
cegueira noturna,
pendura a conta
e não corta mais,
suspendendo seu pêndulo
de Nietzsche ou Poe
por um nada que pisca
e tira folga e sai
afiado para a rua
como um ato falho
deixando as chaves
soltas
em cima do balcão.

 

Ana Cristina Cesar, Poética

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Aventura na casa atarracada

ana cristina cesar

Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
– Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: – Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

 

Ana Cristina Cesar, A teus pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Último adeus III

ana cristina cesar

Tenho escrito longamente sobre este assunto
Aizita traz o chá
Bebericamos na varanda
Nenhum descontrole na tarde
Intervalo para as folhas caindo da árvore em frente
que nos entra pela janela
Não precisamos nos dizer nada
O parapeito vaza outra indicação
seca do presente
Ouvimos:
outra indicação seca do presente
Aizita vai ver na folhinha
pendurada no prego da cozinha
Acaba o chá
Acaba a colher de chá
Longamente
Eu também, bem, tenho escrito

 

Ana Cristina Cesar, A Teus Pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Conversa de senhoras

ana cristina cesar

Não preciso nem casar
Tiro dele tudo o que preciso
Não saio mais daqui
Duvido muito
Esse assunto de mulher já terminou
O gato comeu e regalou-se
Ele dança que nem um realejo
Escritor não existe mais
Mas também não precisa virar deus
Tem alguém na casa
Você acha que ele agüenta?
Sr. ternura está batendo
Eu não estava nem aí
Conchavando: eu faço a tréplica
Armadilha: louca pra saber
Ela é esquisita
Também você mente demais
Ele está me patrulhando
Para quem você vendeu seu tempo?
Não sei dizer: fiquei com o gauche
Não tem a menor lógica
Mas e o trampo?
Ele está bonzinho
Acho que é mentira
Não começa

Ana Cristina Cesar, Aos Teus Pés

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Pour Mémoire

ana cristina cesar

Não me toques
nesta lembrança.
Não perguntes a respeito
que viro mãe-leoa
ou pedra-lage lívida
ereta
na grama
muito bem-feita.
Estas são as fazes da minha fúria.
Sob a janela molhada
passam guarda-chuvas
na horizontal,
como em Cherbourg,
mas não era este
o nome.
Saudade em pedaços,
estação de vidro.
Água
As cartas
não mentem jamais:
virá ver-te outra vez
um homem de outro continente.
Não me toques,
foi minha cortante resposta
sem palavras
que se digam
dentro do ouvido
num murmúrio.
E mais não quer saber
a outra, que sou eu,
do espelho em frente.
Ela instrui:
deixa a saudade em repouso
(em estação de águas)
tomando conta
desse objeto claro
e sem nome.

Ana Cristina Cesar, A Teus Pés 

Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar – Samba-canção

ana cristina cesar

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

Ana Cristina Cesar, A Teus Pés