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Ana Martins Marques

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Lembrete

ana martins marques

Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um céu inestrelado
templos brancos como ossos
repousam entre oliveiras
quase igualmente antigas

uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua trança pesada

um pequeno lama
cabeceia de sono

e há leões e laranjas
falcões e hangares
anêmonas e zinco

um bando de antílopes
atravessa um pedaço de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais

em silêncio um homem prepara
menos comida do que ontem

um a um
partem os barcos
de passeio

chove intensamente
sobre teleféricos

uma mulher vê
a cidade acender-se
à medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas

arrumam-se armários
roupas de pessoas mortas
envelhecem também
os automóveis
e as máquinas agrícolas

com uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que então serão deixados
afogando-se
na areia

alguém conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita

pensar que devemos estar
à altura
disso

Ana Martins Marques, Risque esta palavra

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Meu amigo

ana martins marques

Meu amigo,

quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos

com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol

mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo

não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça

e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra

(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal

um poema não é mais
do que uma pedra que grita

risque por favor
esta palavra

Ana Martins Marques, Risque esta palavra

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – O beijo

ana martins marques

Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca

Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?

É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim


Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Viajo olhando pela janela do ônibus…

ana martins marques

Viajo olhando pela janela do ônibus
em busca das linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas
neles não ventava nem chovia
e nunca era noite
e eu passava horas estudando
todos os caminhos que me levariam até você
mas nos mapas eu nunca te encontrava
chego em duas ou três horas
o coração no peito como um pão
ainda quente na mochila
talvez você me espere na rodoviária
talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus
assim que descer vou entregar nas suas mãos
emboladas num novelo
as linhas desfeitas das fronteiras e
como as contas luminosas de um colar
cada um dos nomes das cidades


Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Fotografia

ana martins marques

Coloquei no quadro
uma fotografia sua
nesta mesma sala:
sentado na poltrona
vermelha
você levanta os olhos do livro
fingindo ter sido surpreendido

A uma certa hora do dia,
quando a luz se inclina
e as cores
caem para dentro
de si mesmas
você se parece
consigo

Ana Martins Marques, Da arte das armadilhas

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Faca

ana martins marques

Como chamar faca
tanto aquela
enfiada na fruta
quanto aquela
enfiada no peito?
como chamar fruta
tanto o sol polpudo da laranja
quanto a lua doce da lichia?
como chamar peito
tanto o peso oco do meu coração
quanto o peso oco do seu coração?

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – O encontro

ana martins marques

Combinamos de nos encontrar num livro
na página 20, linhas 12 e 13, ali onde se diz que
privar-se de alguma coisa
também tem seu perfume e sua energia

combinamos de nos encontrar num mapa
depois da terceira dobra
entre as manchas de umidade
e a cidade circulada de azul

combinamos de nos encontrar
na primeira carta
entre a frase estúpida em que reclamo da falta de dinheiro
e a única palavra escrita à mão

combinamos de nos encontrar
no jornal do dia, em algum lugar
entre os acidentes de automóveis
e as taxas de câmbio

combinamos de nos encontrar
neste poema, na última palavra
da segunda linha
da segunda estrofe de baixo para cima

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Maria Marques – Reparos

ana martins marques

Algumas coisas
quando se quebram
são fáceis de consertar:
uma xícara lascada
uma estatueta de gesso
um sapato velho
uma receita que desanda
ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem
as marcas do remendo,
é possível que essas marcas
tenham um certo charme
como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar
um poema que estragou.

Ana Martins Marques, A vida submarina

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Reparos

ana martins marques

Algumas coisas
quando se quebram
são fáceis de consertar:
uma xícara lascada
uma estatueta de gesso
um sapato velho
uma receita que desanda
ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem
as marcas do remendo,
é possível que essas marcas
tenham um certo charme
como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar
um poema que estragou.

Ana Martins Marques, A vida submarina

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Epígrafe

ana martins marques

Octavio Paz escreveu:
“A palavra pão, tocada pela palavra dia,
torna-se efetivamente um astro; e o sol,
por sua vez, torna-se alimento
luminoso”

Paul de Man escreveu:
“Ninguém em seu perfeito juízo ficará à espera
de que as uvas em sua videira amadureçam
sob a luminosidade
da palavra dia”

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – O brinco

ana martins marques

Pode ser que como as estrelas
as coisas estejam separadas
por pequenos intervalos de tempo
pode ser que as nossas mãos
de um dia para o outro
deixem de caber
umas dentro das outras
pode ser que no caminho para o cinema
eu perca uma de minhas ideias
preferidas
e pode ser
que já na volta
eu me tenha resignado
alegremente
a essa perda
pode ser
que o meu reflexo sujo
no vidro da lanchonete
seja uma imagem de mim
mais exata
do que esta fotografia
mais exata do que a lembrança
que tem de mim
uma antiga colega de colégio
mais exata do que a ideia
que eu mesma
agora tenho de mim
e portanto pode ser
que a moça cansada
de olhos tristes
que trabalha na lanchonete
tenha de mim uma imagem
mais fiel
do que qualquer outra pessoa
pode ser que um gesto
um jeito de dobrar os lábios
te devolva
subitamente
toda a infância
do mesmo modo que uma xícara
pode valer uma viagem
e uma cadeira
pode equivaler a uma cidade
mas um cachorro estirado ao sol não é o sol
e uma quarta-feira não pode ser o mesmo
que uma vida inteira
pode ser
meu querido
que esquecendo em sua cama
meu brinco esquerdo
eu te obrigue mais tarde
a pensar em mim
ao menos por um momento
ao recolher o pequeno círculo
de prata
cujo peso
frio
você agora sente nas mãos
como se fosse
(mas ó tão inexato)
o meu amor

Ana Martins Marques, Da arte das armadilhas

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Poema de amor

ana martins marques

Este é um poema de amor

por isso nele
não poderá faltar
a menção a alguma
flor

e por isso digo
rosa
ou lírio
ou simplesmente
rubro,
rubro

e espero as páginas
imantarem-se
de vermelho

por isso digo
febre
e noite
e fumo

para dizer
ansiedade e
desperdício de sêmen e de horas
e cigarros à janela
acesos como estrelas
com a noite numa ponta
e nós
consumindo-nos
na outra

este é
definitivamente
um poema de amor

por isso nele
devo dizer casa
e olhos
e neblina

e não devo dizer
que o amor é uma doença
uma doença do pensamento
uma desordem que põe tudo o mais
em desordem
uma perda que põe tudo
a perder

e porque é
um poema de amor
sob pena de ser devolvido
como uma carta sem destinatário
(e todos sabem que não se deve
brincar com os correios)
este poema deve dirigir-se
a alguém

porque a alguém o amor deve ferir
com sua pata negra

e então
à falta de outro
este poema
eu o dedico
(mas não tema,
o tempo
também nisso
porá termo)
a você

Ana Martins Marques, Da artes das armadilhas

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Poemas reunidos

ana martins marques

Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes
um pouco entediados
em volta de uma mesa
como ex-colegas de colégio
como amigas antigas para jogar cartas
como combatentes
numa arena
galos de briga
cavalos de corrida ou
boxeadores num ringue
como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel de parede

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças