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Ana Martins Marques

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Acidente

ana martins marques

Escrevi este poema no último dia
depois disso não nos vimos mais
a princípio trocamos telefonemas
em que você sempre parecia estar prestes a perder o trem
enquanto eu sempre parecia ter acabado de perdê-lo
escrevi este poema depois do primeiro telefonema
você falava sobre vistos e repartições
e sobre como para conseguir um documento sempre é necessário um outro
que no entanto só se pode obter de posse daquele
eu falava sobre as noites perdidas na companhia de alguém
que nunca era você
depois aos poucos você deixou de ligar
escrevi este poema no segundo domingo
em que você de novo não telefonou
ao redor do poema como em volta de um acidente
juntou-se muita gente
para ver o que era

 

Ana Martins Marques, O Livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Esconderijo

ana martins marques

Estas são palavras que eu não
deveria dizer

palavras que ninguém
devia ouvir

que elas permanecessem no silêncio
de onde vêm

no fundo escuro da língua
cheio de doçura e ruídos

com o ranço informulado
dos segredos

por via das dúvidas escondi-as aqui
neste poema
onde ninguém as vai encontrar

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Papel de seda

ana martins marques

Houve um tempo em que se usava
nos livros
papel de seda para separar
as palavras e as imagens
receavam talvez que as palavras
pudessem ser tomadas pelos desenhos
que eram
receavam talvez que os desenhos
pudessem ser entendidos como as palavras
que eram
receavam a comunhão universal
dos traços
receavam que as palavras e as imagens
não fossem vistas como rivais
que são
mas como iguais
que são
receavam o atrito entre texto
e ilustração
receavam que lêssemos tudo
os sulcos no papel e as pregas das saias
das mocinhas retratadas
as linhas da paisagem e o contorno das casas
eu receava rasgar o papel de seda
erótico como roupa íntima

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Poema de verão

ana martins marques

Você está sob a luz
de certos poemas cheios de sol
sua mão faz sombra sobre a página
encobrindo algumas palavras
a palavra menina agora está à sombra
a palavra retângulo
a palavra brinquedo
as outras palavras ficam pairando
no poema como partículas de poeira
brilhando na luz
você gostaria de escrever poemas assim
em que se encontrasse de repente
o esqueleto alvo de um animal pequeno
ou em que um jovem casal dormisse
dentro de uma picape vermelha
ou ao menos em que houvesse uma raposa
vinho de maçã, cadeiras desdobráveis
e onde as cervejas fossem postas para esfriar
dentro de um rio
você gostaria de escrever um poema
em que acontecessem tantas coisas
e as palavras vibrassem um pouco
num acordo tácito
com as coisas vivas
em vez disso você escreve este

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Tradução

ana martins marques

Este poema
em outra língua
seria outro poema

um relógio atrasado
que marca a hora certa
de algum outro lugar

uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança

uma casa de montanha
reconstruída sobre a praia
corroída pouco a pouco pela presença do mar

o importante é que
num determinado ponto
os poemas fiquem emparelhados

como em certos problemas de física
de velhos livros escolares

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Boa ideia para um poema

ana martins marques

Anotei uma frase num caderno
encontrei-a algum tempo depois
pareceu-me uma boa ideia para um poema
escrevi-o rapidamente
o que é raro
logo depois me ocorreu que a frase anotada no caderno
parecia uma citação
pensei me lembrar que a copiara de um poema
pensei me lembrar que lera o poema numa revista
procurei em todas as revistas
são muitas
não encontrei
pensei: se eu não tivesse me lembrado de que a frase não era minha
ela seria minha?
pensei: se eu me lembrasse onde li todas as frases que escrevi
alguma seria minha?
pensei: é um plágio se ninguém nota?
pensei: devo livrar-me do poema?
pensei: é um poema tão bom assim?
pensei: palavras trocam de pele, tanto roubei por amor, em quantos e quantos
livros já li
histórias sobre nós dois
pensei: nem era um poema tão bom assim

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças 

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Segundo poema

ana martins marques

Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página

como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe

pra isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia

escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Primeiro poema

ana martins marques

O primeiro verso é o mais difícil
o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro
ou finalmente encara
o dia

o dia: contas a pagar
correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas

aqui ao menos não encontrarás,
leitor,
xícaras sujas

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças