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Audre Lorde

Audre Lorde

Audre Lorde – Dia de ano novo

Audre Lorde

O dia parece montado às pressas
como um presente para indigentes gratos
sendo melhor do que tempo nenhum
mas os sinos estão tocando
em cidades que nunca visitei
e meu nome está escrito em soleiras
que nunca vi
Durante a extração de um osso
ou do que quer que seja macio ou frutífero
lá do cerne de dias indiferentes
eu me esqueci
do toque do sol
devassando manhãs frouxas
A noite é cheia de recados
que não sei ler
Estou muito ocupada esquecendo
ar feito pelo em minha língua
e essas lágrimas
que não vêm de tristeza
mas de areia num às vezes vento

A chuva cai feito breu na minha pele
meu filho pega um coração de galinha na janta
perguntando
isso ama?
Intravessos dedos hábeis de fantasmas
pinçam meus sonhos
segredam qualquer coisa de pesar
que me beneficiaria

Eu estou pronta
e não temo
nada.

Audre Lorde, Entre nós mesmas – Poemas reunidos – Tradução, Tatiana Nascimento, Valéria Lima

Audre Lorde

Audre Lorde – Nota escolar

Audre Lorde

Minhas crias brincam com caveiras
pois suas salas de aula
são vigiadas por bruxos
que berram pelas paredes desabando
como banheiros de papel
bruxas roliças lançam antigas maldições
em uma língua não ensinada
testam crianças sobre seus significados
dando notas
em um holocausto
que varia
da fúria ao desprezo.

Minhas crias brincam com caveiras
na escola
elas já aprenderam
a sonhar com a morte
seus parquinhos
eram cemitérios
onde pesadelos do não
montavam guarda na terra alugada
cheia de ossos do amanhã.

Minhas crias brincam com caveiras
e se recordam
que para quem luta
não há lugar
que não possa ser
lar
nem que seja.

Audre Lorde, Entre nós mesmas – Poemas reunidos

Audre Lorde

Audre Lorde – Quem disse que seria simples?

Audre Lorde

Há tantas raízes na árvore da raiva
que às vezes os galhos partem
antes de brotar.

Sentadas em Nedicks6
as mulheres se juntam antes de marchar
falando sobre as jovens problemáticas
que elas empregam para se libertarem.
Um balconista quase branco ignora
um irmão que espera para servi-las primeiro
e as madames nem notam nem rejeitam
os prazeres fugazes de sua escravidão.
Mas eu, que estou atada ao meu espelho
assim como à minha cama,
vejo causas na cor
assim como no sexo

e sento aqui indagando
qual eu vou sobreviver
a todas essas liberações.

Audre Lorde, Entre nós mesmas: poemas reunidos

Audre Lorde

Audre Lorde – Para cada uma de vocês

Audre Lorde

Sejam quem são e serão
aprendam a celebrar
aquele Anjo Negro ruidoso que lhes guia
pelos altos e baixos dos dias
protegendo o lugar donde seu poder emerge
correndo feito sangue quente
da mesma fonte
que sua dor.

Quando sentirem fome
aprendam a comer
o que quer que dê sustância
até a manhã
mas não se deixem perder em detalhes
simplesmente porque vocês os vivem.

Não deixem sua mente negar
suas mãos
memória alguma do que passa por elas
nem seus olhos
nem seu coração
tudo pode ser usado
menos o que é inútil
(vocês precisarão
se lembrar disso quando forem acusadas de destruição.)
Mesmo quando forem perigosas
examinem o coração das máquinas que vocês odeiam
antes de descartá-las
e nunca lamentem sua falta de poder
pra que não condenem vocês
a revivê-las.
Se vocês não aprenderem a odiar
nunca ficarão sós
o bastante
para amar facilmente
tampouco serão sempre corajosas
embora isso tampouco brote fácil

Não finjam crenças convenientes
mesmo quando são justificadas
vocês nunca conseguirão defender sua cidade
enquanto gritam.

Lembrem-se que nosso sol
não é nem a estrela mais digna de menção
nem a mais próxima.

Respeitem qualquer dor que venha
dos seus sonhos
mas não procurem deuses novos
no mar
nem em qualquer parte de um arco-íris
Cada vez que amarem
amem tão fundo
como se fosse
para sempre
só que nada é
eterno.
Falem com suas crias orgulhosamente
onde quer que as encontrem
digam a elas
vocês descendem de escravizades1
e sua mãe foi
uma princesa
na escuridão.

Audre Lorde, Entre nós mesmas : poemas reunidos