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Augusto Frederico Schmidt

Augusto Frederico Schmidt

Augusto Frederico Schmidt – A ausente

Os que se vão, vão depressa,
Ontem, ainda, sorria na espreguiçadeira.
Ontem dizia adeus, ainda, da janela.
Ontem vestia, ainda, o vestido tão leve cor-de-rosa.

Os que se vão, vão depressa.
Seus olhos grandes e pretos há pouco brilhavam.
Sua voz doce e firme faz pouco ainda falava,
Suas mãos morenas tinham gestos de bênçãos.
No entanto hoje, na festa, ela não estava.
Nem um vestígio dela, sequer,
Decerto sua lembrança nem chegou, como os convidados —
Alguns, quase todos, indiferentes e desconhecidos.

Os que se vão, vão depressa.
Mais depressa que os pássaros que passam no céu,
Mais depressa que o próprio tempo,
Mais depressa que a bondade dos homens,
Mais depressa que os trens correndo nas noites escuras,
Mais depressa que a estrela fugitiva
Que mal faz um traço no céu.
Os que se vão, vão depressa.
Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações,
Só no coração sempre ferido do poeta
É que não vão depressa os que se vão.

Ontem ainda sorria na espreguiçadeira,
E o seu coração era grande e infeliz.
Hoje, na festa ela não estava, nem a sua lembrança.
Vão depressa, tão depressa os que se vão…

Augusto Frederico Schmidt, Pássaro cego

Augusto Frederico Schmidt

Augusto Frederico Schmidt – As chuvas da primavera

Em breve virão as chuvas da Primavera,
As chuvas da primavera
Vão descer sobre os campos,
Sobre as árvores pobres,
Sobre os rios degelando.

As chuvas da Primavera
Cairão sobre os jardins perdidos,
Sobre os rosais desnudos,
Sobre os canteiros sem flor.

As chuvas da Primavera anunciarão
Os grandes dias próximos,
E a cantiga das águas escorrendo
Dos beirais
Nos dirá do tempo próximo,
Das primeiras flores,
Dos primeiros ninhos,
Das primeiras palpitações
Dos brotos,
Das esperanças,
Da vida que se insinua em tudo,
Nos ramos,nas penugens,
Nos céus limpos.

Em breve virão as chuvas da Primavera.
Os rios já estão degelando
O frio já não é tão mau.
Adormece, pois, meu amor,
E esquece este inverno,
Deixa que o sono te leve,
Como as águas levam flores
E folhas soltas.

Augusto Frederico Schmidt, Um século de poesia

Augusto Frederico Schmidt

Augusto Frederico Schmidt – A alma

Às vezes eu sinto – minha alma
Bem viva.
Outras vezes porém ando erradio,
Perdido na bruma, atraído por todas as distâncias.

Às vezes entro na posse absoluta de mim mesmo
E a minha essência é alguma coisa de palpável
E de real.
Outras vezes porém ouço vozes chamando por mim,
Vozes vindas de longe, vozes distantes que o vento traz nas tardes mansas.

Sou o que fui …
Sou o que serei …

Às vezes me abandono inteiramente a saudades estranhas
E viajo por terras incríveis, incríveis.
Outras vezes porém qualquer coisa à-toa –
O uivo de um cão na noite morta,
O apito de um trem cortando o silêncio,
Uma paisagem matinal,
Uma canção qualquer surpreendida na rua –
Qualquer coisa acorda em mim coisas perdidas no tempo
E há no meu ser uma unidade tão perfeita
Que perco a noção da hora presente, e então

Sou o que fui.
E sou o que serei.

Augusto Frederico Schmidt, Poesia completa: 1928-1965