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Bruno Tolentino

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – A rolha

bruno tolentino

O cárcere que os ingleses
chamam “Ilha do Diabo”
flutua por doze meses
no úmido lençol do charco

que enrola, envolve, circunda
os muros de “Dartmoor”;
lá o Inverno é uma segunda
camada de cinza escura

por cima do cobertor
de névoa e padecimento
que vai descascando a cor
do rosto, da dor, do tempo

em que o mundo tinha céu.
Mais de um forçado lá morre
sufocado pelo véu
quase líquido em que o forte

dissolve primeiro os músculos
e pouco depois a pleura,
os pulmões, como os crepúsculos
desmancham a luz à beira

das cruzes que formam as grades.
Mais de um acesso de tosse
levou às proximidades
senão aos braços da morte

uma daquelas figuras
que lá chegam como estátuas
soberbas, sólidas, duras,
mas que, desfeitas, exaustas

de tossir contra um céu frio,
deixam-se enrolar sem luta
num pergaminho vazio,
como simples garatuja…

Minha estátua não tossia,
ou nunca tossia em público;
deu-me um susto quando um dia
cobriu a cara e de súbito

sacudiu-se, convulsivo,
sem um som que confessasse
o verdadeiro motivo
do acesso infame… Que arte,

que engenho meu pode vir
a dar conta, aqui, do esforço
que fez para não tossir
em público aquele moço?

Aquele duro novelo
sufocar-se-ia antes,
se preciso! Pude vê-lo
rolar e enrolar-se, grande,

pesado como um cavalo,
e maleável no entanto
como a rolha num gargalo…
Desenrolara-se quando

o acesso tinha passado,
ou tinha sido engolido
como uma rolha, coitado.
Uma estátua de granito

levantou-se enfim do chão
fosca como um céu cinzento;
retomou seu cantochão:
“Como lhe estava dizendo…”

Bruno Tolentino, A balada do cárcere

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – Descobertas

bruno tolentino

Descobre-se que a paixão,
a paixão e a primavera,
se são paralelas são
dois termos da mesma espera.

Espera encantada ou não,
ambas não passam de mera,
febril aproximação
da jaula aberta da fera,

tremor contínuo da mão
que agarra o gradil e enterra
as unhas na solidão
que força mas não descerra.

Mordida de comunhão,
no tronco o dente da serra,
no dente o grito do grão,
e a boca aberta da terra

recebe e fecunda o chão
com os pedaços que a pantera
desmembrou na confusão
com o corpo que já não era

sequer a gazela e em vão
se debate e dilacera
de tanta sofreguidão.
A véspera desespera.

Bruno Tolentino, A Balada do cárcere

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – Ímpar

bruno tolentino

“E eu, que odeio tudo o que recordo
em meu penoso, sórdido exercício,
a harmonia mais frágil que difícil,
mais passível de encanto que de acordo;

eu, que hoje escuto o rouxinol e o tordo
entre grades e névoas, desde o início
sabia que a beleza é um precipício
e que o mesmo Verão consume a cor

do efêmero que acende… Eu, que aceitando
a imperfeição de tudo iria dar
com a perfeição moral de vez em quando,

agora, aqui, na luz crepuscular
deste lugar vazio, tenho um bando
de visões, só não posso ter um par.”

Bruno Tolentino, A balada do cárcere

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – O que eu por fim lhe disse:

bruno tolentino

– As voragens da carne
conheço-as muito bem
e as confusões do coração também,
mas não posso enganar-me:
se me ficaram os meios
já não tenho os motivos.

Tens dois olhos altivos,
mas duros, muito duros porque cheios
de coisas mortas, dessa inútil carga
que te legou aquela noite amarga
em que uma vida jovem foi perdida.

Admito que existe
esse instante suspenso
entre o nada e o que foi aquela vida,
mas olha-o: é a escuridão que o traz, que insiste
em não soltar as folhas
que o vento sacudiu e não levou
aquele dia,
mas uma tarde qualquer afinal levaria.

No entanto, quando olhas
agora uma vez mais a luz pintar
os muros desta cela, esta luz fria,
rápida como o voo
de uma gaivota branca como o lenço
que um dia fez Desdêmona chorar,
em teu olhar
há como um fim de pesadelo, intenso,
eu sei, mas de que um dia,
um dia, quase manso
como o falcão viúvo e o último ganso,
tu também, meu irmão, vais acordar.

Bruno Tolentino, A balada do cárcere

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – A gralha

bruno tolentino

É então que aquele pária das próprias ilusões,
o encarcerado que ninguém visita,
gruda-se às grades como a parasita
ao fim das estações
e, a sós com os nevoeiros, se limita
a desfolhar visões.

Não tendo a quem contar que necessita,
Senhor, do que lhe pões
fora de mão segundo Tua estrita
e amarga disciplina, aos encontrões
contra si mesmo desenlaça a fita
mais puída da névoa e espalha as confissões.

Pobre infeliz! Nunca tem mais que a bruma e, aflita,
só entre assombrações,
sua alma pavoneia-se, torna-se a gralha, imita
os gritos do pavão ciscando entre os pinhões.
Se um som assim te irrita,
leitor, fecha este livro e vai ouvir canções…

Bruno Tolentino, A balada do cárcere

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – O pavão

bruno tolentino

Por lá o Outono chega anunciado
pelos gritos agudos do pavão
dilacerando o ar; é só então
que se percebe o dardo
vindo da sombra, o arpão
da última luz nas folhas de um para o outro lado.

O outro lado das sombras que se estiram no chão
como mais um bordado
da Penélope* fria que tece a escuridão.
Pobre animal! Começa o baile temporão
e ele o anuncia aos gritos, seu leque depenado
pluma por pluma na penúltima estação…

Quando acabar de se fechar a mão
que a luz cadente estende ao povoado
das sombras que não vão
a parte alguma, o último emblema do Verão
irá ciscar sozinho, como que envergonhado,
nas agulhas caídas do pinheiral gelado.

É por isso, por causa da desaparição
de um Estio tão breve num bailado
tão rápido, é por isso que o pavão
trespassa o ar, grito por grito apaixonado,
e a reverberação
da luz nas folhas se parece tanto a um dardo.

 

Bruno Tolentino, A balada do carcere

Bruno Tolentino

Bruno Tolentino – Um prelúdio

bruno tolentino

Amadureci aos poucos,
cresci muito devagar
como os álamos e os loucos
e acabei indo morar

na Casa dos Homens Ocos,
um charco pardo ao luar
entre o tempo morto, os roucos
rugidos do vento e o mar.

Lá se vive sem querer;
lá ouvi uma elegia;
dou-a aqui tal qual ouvi-a

ao cair do entardecer
sobre a charneca vazia,
os pântanos que há no ser.

 

Bruno Tolentino, A balada do cárcere