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Cacaso

Cacaso

Cacaso – Fábula

Cacaso

Minha pátria é minha infância.
Por isso vivo no exílio.
Talvez o barco contasse
deste percurso no tempo.
De como seria o escafandro
isento de tal mergulho.
Minha pátria é sob a pele:
Cargueiro no mar de névoa.
Antigamente os conflitos
não aspiravam a ser.
De como fiquei trancado
na torre em que era dono.
E a certeza como faca
engolindo a própria lâmina.
De como se libertaram
os mitos presos na forca,
e o exato espanto vindo da terra,
dos gestos do imperador.

Cacaso, Poesia completa

Cacaso

Cacaso – Anulação

Cacaso

Fiquei mais velho. 20 anos
e nenhuma preparação para a vida.
A calma sedimentou-se mas
a ironia vagueia no campo e ruge.
Pelos olhos recebo o tempo, interpreto
e nego. É muito forte o tempo.
Me invento na laje, no corte e na
palavra. Inútil: estou sempre começando.
O amor resvala e acena e já
descrente desta ou de outra miragem,
recolho nada entre o céu e a idade.
Tudo esfriou e nem era o frio, e nem
o germe pondo a noite no casulo:
Corpo desfeito e tempo nulo.

Cacaso, Poesia Completa

Cacaso

Cacaso – Gameleira

Cacaso

Muito longe do arabesco,
do arlequim e da moda,
à sombra da gameleira
que a previsão já recorta,
naquelas terras perdidas
recuperadas na troca,
vagamos por um caminho:
Mistura de ida e volta.
Naquelas terras estanques
onde a razão era morta:
Araçá, caju do brejo,
mistura de vida e volta.
Mistura de teu soluço
com a nossa ânsia torta:
No ventre da gameleira
a vida era tida morta.
A vida era tida longe
como um sol que não acorda:
No ventre da gameleira
volta e vida, ida e volta.

Cacaso, Poesia completa

Cacaso

Cacaso – Obrigação

Cacaso

Os homens colhendo flores
vão resgatar os seus mortos.
Uma culpa não se lava
com simples água de chuva.

Os que se foram conhecem
este ofício do homem.
O sentimento permanece,
só os rostos se renovam.

Viver já se torna um peso
para o homem carregar.
Dizei, Jesus: há sempre paz
no reino de meus irmãos?

Os homens são deglutidos
pela carreta humana.
Estão alheios entre flores,
saudosos da inexistência.

Cacaso, Poesia completa

Cacaso

Cacaso – Palavras… palavras…

Cacaso

Tem havido muitas luas
muitas luas cheias
muitas noites
daquelas bem escuras
Muitos dias lindos
daqueles bem claros
de modos que vou ficando
por aqui, não sem antes
celebrar… Celebrar o quê
meu Deus! Celebrar o quê?!…
A natureza é tão pura
a gente planta uma semente
e ela vira árvore. Até os
grilos parece que foram
feitos por Deus. Tudo canta.
Tem havido muitas luas
muitas luas cheias

Cacaso, Poesia Completa

Cacaso

Cacaso – Poética

Cacaso

Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.


Cacaso, Poesia completa

Cacaso

Cacaso – Madrigal para Cecília Meireles

Cacaso

Quando na brisa dormias,
não teu leito, teu lugar,
eu indaguei-te Cecília:
Que sabe o vento do mar?
Os anjos que enternecias
romperam liras ao mar.
Que sabem os anjos, Cecília,
de tua rota lunar?
Muitas tranças arredias,
um só extremo a chegar:
Teu nome sugere ilha,
teu canto: um longo mar.
Por onde as nuvens fundias
a face deixou de estar.
Vida tão curta, Cecília,
pra que então tanto mar?
Que música mais tranquila,
quem se dispôs a cantar?
São tuas falas, Cecília,
a barco tragando o mar.
Que céu escuro havia
há tanto por te espreitar?
Que alma se perderia
na noite de teu olhar?
Sabemos pouco, Cecília,
temos pouco a contar:
Tua doce ladainha,
a fria estrela polar
a tarde em funesta trilha,
a trilha por terminar
precipita a profecia:
Tão curta a vida, Cecília,
tão longa a rota do mar.
Em te saber andorinha
cravei tua imagem no ar.
Estamos quites, Cecília:
Joguei a estátua no mar.
A face é mais sombria
quanto mais se ensimesmar:
Tão curta a vida, Cecília,
tão negra a rota do mar.
Que anjos e pedrarias
para erguer um altar?
Escuta o coral, Cecília:
O céu mandou te chamar.
Os anjos com tantas liras
precisam do teu cantar.
Com tua doce ladainha
(vida curta, longo mar)
proclames a maravilha.


Cacaso, Poesia completa

Cacaso

Cacaso – Explicação do amor

Cacaso

O amor em seu próprio corpo
recebe os cacos que lança:
Diálogo de briga ou rinha
em tom de magia branca.

O amor, o dos amantes,
é sangue da cor de crista:
Coagula insensivelmente
nas polifaces de um prisma.

O amor nunca barganha,
que trocar não é seu fraco:
Recebe sempre entornado
como a concha de um prato.

Amor não mata: previne
o que vem depois do susto:
Modela o aço e o braço
que vão suportar o muro.

O amor desconhece amor
sem ter crueza por gosto:
Contempla-se diante do espelho
sem nunca ver o outro rosto.

Cacaso, Poesia completa

Cacaso

Cacaco – Em tempo de notícia

Cacaso

Deitado ao frio espero
a transição que já vem:
Galo rompendo luas
galopando entre marcas
que não ousam assentar.
Onde a noite me recolhe
em silente nostalgia
mando notícia dos meus:
A família se dissolve
e transborda mansamente,
dispersante além do frasco:
Insônia ramo partido
medo, tortura, asco.
A cada passo uma pena
a cada traço uma cena
desafia os meus olhos
nem duo de contrição.
E vou de mim despedindo,
aceno ao largo, na volta,
em mim mesmo que prescrevo
sinuosa afeição.
Sou mapa e não me desvendo,
sou ilha e não me abraço.
Sou chama na saliência
deste incontido amor.
Peixe parindo rios,
cristal de minha ambição
que se recua a si mesmo
entre vísceras latentes
retidas no alçapão.
Terra de peixe: magia.
Sangue de peixe: noção.
Não era sangue nem terra
adubo de fina hera
e alga também não era
convergindo na feição.
Não era sangue e tingia
não era amor e doía
pungia no coração.
Que sombra já me pressente
e me nomeia até mesmo
onde não mando cartão?
Indago apontamentos
e me censuro e cerco
o que de mim esvoaça
sem formas de contenção.
Estou partindo: para onde?
Viajo pelo deserto
e sinto que vou morrer.
E sinto voar a pena
ao longo de meus cabelos.
Agora estou livre e deito
numa planície minada.
Entre rios cresce a chama
buscando uniformidade,
uma orquídea entre as ramas.
Em meus olhos cravejados
constroí o peixe o retiro:
Fluir além das escamas.

Cacaso, A Palavra Cerzida

Cacaso

Cacaso – A fonte

Cacaso

Fonte da saudade
toda essa água tão limpinha
toda canção que ninguém fez
coisa sem porquê e sem destino
não avisa quando vem
quando vai…
passou a vida inteira
a fonte não secou
pra que lugar, me diga
foi o meu amor, ah!
passou a noite inteira
essa noite serenou
o meu bem dormiu comigo
e a gente acordou
fonte da saudade
onde deságua tão limpinha
toda canção
que ninguém fez
coisa sem porquê e sem destino
não avisa quando vem
quando vai
deságua…

Cacaso, Beijo na boca e outros poemas

Cacaso

Cacaso – Surdina

Cacaso

Primeiro o Tenório Jr.
que sumiu na Argentina
Depois quando perigava
onze e meia da matina
veio a notícia fatal:
faleceu Elis Regina!
Um arrepio gelado
um frio de cocaína!
A morte espreita calada
na dobra de uma esquina
rodando a sua matraca
tocando a sua buzina
Isso tudo sem falar
na morte do velho Vina!
E agora a Clara Nunes
que morre ainda menina!
É demais! Que sina!
A melhor prata da casa
o ouro melhor da mina
Que Deus proteja de perto
a minha mãe Clementina!
Lá vai a morte afinando
o coro que desafina…
Se desse tempo eu falava
do salto da Ana Cristina…

Cacaso, Lero-lero

Cacaso

Cacaso – Refém

Cacaso

Eu sempre quis requebrar
só me faltou poesia
eu nunca soube rimar
mas sempre tive ousadia
nunca joguei o destino
e nem matei a família
a minha sorte na vida
se escreve com C cedilha
Eu nunca tive ideal
nunca avancei o sinal
nem profanei minha filha
Eu me perdi muito além
sendo meu próprio refém
na solidão de uma ilha

Eu sempre quis acertar
só me faltou pontaria
eu nunca soube cantar
mas sempre tive mania
nunca brinquei carnaval
e nem saí da folia
nunca pulei a fogueira
e nem dancei a quadrilha
Eu nunca amei a ninguém
nunca devi um vintém
nem encontrei minha trilha
Eu me perdi muito além
sendo meu próprio refém
na solidão de uma ilha

 

Cacaso, Poesia marginal

Cacaso

Cacaso – Terceiro amor

Cacaso

O primeiro amor já passou
o segundo amor já passou
como passam os afluentes
como passam as correntes
que desencontram do mar
Como qualquer atitude
também passa a juventude
que nem findou de chegar

O primeiro amor já passou
o segundo amor já passou
como passam os espelhos
como passam os conselhos
ilusões de pedra e cal
Como passam os perigos
e tantos muitos amigos
sem deixar nenhum sinal

O primeiro amor já passou
o segundo amor já passou
como passam as gaivotas
as vitórias as derrotas
fantasias carnavais
as inocências perdidas
como passam avenidas
corredores temporais
A correnteza dos rios
como passam os navios
que a gente acena do cais

 

Cacaso, Poesia marginal – Antologia poética