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Cecília Meireles

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A Canção dos tamanquinhos

cecilia meireles

Troc…  troc… troc…  troc…
ligeirinhos, ligeirinhos,
troc…  troc… troc…  troc…
vão cantando os tamanquinhos…

Madrugada.   Troc… troc… 
pelas portas dos vizinhos
vão batendo, Troc…  troc…
vão cantando os tamanquinhos…

Chove.  Troc… troc…  troc…
no silêncio dos caminhos
alagados, troc…  troc…
vão cantando os tamanquinhos…

E até mesmo, troc…  troc…
os que têm sedas e arminhos,
sonham, troc…  troc… troc…
com seu par de tamanquinhos…

 

Cecilia Meireles, Obras poéticas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Canção do caminho

cecilia meireles

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa…
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa…)

 

Cecilia Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Reinvenção

cecilia meireles

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… – mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida, 
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço…
Só – no tempo equilibrada, 
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só – na treva, 
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida, 
a vida só é possível 
reinventada.

 

Cecilia Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Os Carneirinhos

cecilia meireles

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.

Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.

Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã…

 

Cecilia Meireles, Ou isto ou aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Excursão

cecilia meireles

Estou vendo aquele caminho
cheiroso da madrugada:
pelos muros, escorriam
flores moles da orvalhada;
na cor do céu, muito fina,
via-se a noite acabada.

Estou sentindo aqueles passos
rente dos meus e do muro.

As palavras que escutava
eram pássaros no escuro…
Pássaros de voz tão clara,
voz de desenho tão puro!

Estou pensando na folhagem
que a chuva deixou polida:
nas pedras, ainda marcadas
de uma sombra umedecida.
Estou pensando o que pensava
nesse tempo a minha vida.

Estou diante daquela porta
que não sei mais se ainda existe…
Estou longe e fora das horas,
sem saber em que consiste
nem o que vai nem o que volta…
sem estar alegre nem triste,

sem desejar mais palavras
nem mais sonhos, nem mais vultos,
olhando dentro das almas,
os longos rumos ocultos,
os largos itinerários
de fantasmas insepultos…

– itinerários antigos,
que nem Deus nunca mais leva.
Silêncio grande e sozinho,
todo amassado com treva,
onde os nossos giram
quando o ar da morte se eleva.

 

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Tu tens um medo

cecilia meireles

Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo…
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos…
Enganados…
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
… E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

 

Cecilia Meireles, Poesia completa

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – De longe te hei-de amar

cecilia meireles

De longe te hei-de amar 
– da tranquila distância 
em que o amor é saudade 
e o desejo, constância. 

Do divino lugar 
onde o bem da existência 
é ser eternidade 
e parecer ausência. 

Quem precisa explicar 
o momento e a fragrância 
da Rosa, que persuade 
sem nenhuma arrogância? 

E, no fundo do mar, 
a Estrela, sem violência, 
cumpre a sua verdade, 
alheia à transparência. 

 

Cecilia Meireles, Canções

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – O mosquito escreve

cecilia meireles

O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.

Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.

E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.

Oh!
Já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.

 

Cecilia Meireles, Ou isto ou aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Criança

cecilia meireles

Cabecinha boa de menino triste, 
de menino triste que sofre sozinho, 
que sozinho sofre, — e resiste, 

Cabecinha boa de menino ausente, 
que de sofrer tanto se fez pensativo, 
e não sabe mais o que sente… 

Cabecinha boa de menino mudo 
que não teve nada, que não pediu nada, 
pelo medo de perder tudo. 

Cabecinha boa de menino santo 
que do alto se inclina sobre a água do mundo 
para mirar seu desencanto. 

Para ver passar numa onda lenta e fria 
a estrela perdida da felicidade 
que soube que não possuiria. 

 

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – O menino azul

cecilia meireles

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
– de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

 

Cecilia Meireles, Ou isto ou aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Discurso

cecilia meireles

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

 

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Elegia a uma pequena borboleta

cecilia meireles

Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!

 

Cecilia Meireles, Retrato natural

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Papéis-V-

cecilia meireles

Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?
A verdade, porém é que há uns dias inesquecíveis,
uns fatos inesquecíveis, dentro de nós.
Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles.
Toda uma vida se reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que vivamos,
apesar de viagens, experiências, realizações, sonhos, saber…
Vivemos tudo – o humano e o universal –
nuns pequenos instantes, obscuros e essenciais.

Todos os dias assim, de chuvinha fina,
penso em velhas cenas de infância:
a tarde em que comia um pedaço de maçã
e conheci o arco íris;
o livro em que estudava francês,
com uma gravura de crianças felizes, que riam para o ar:
La pluie;
a minha solidão com tesouras, cola e cartolina:
“Brinquedos para os dias de chuva…”

Tudo isso vem `a minha memória, como visitantes inesperados.
Interrompo o que estou fazendo, tenho um pena imensa de mim.
Depois, penso em velhos poemas chineses, curtos e leves.

Sou como quem mira uma antiga coleção de cartões-postais.

 

Cecilia Meireles, Antologia poética

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Jogo de bola

cecilia meireles

A bela bola
rola:
a bela bola do Raul.

Bola amarela,
a da Arabela.

A do Raul,
azul.

Rola a amarela
e pula a azul.

A bola é mole,
é mole e rola.

A bola é bela,
é bela e pula.

É bella, rola e pula,
é mole, amarela, azul.

A de Raul é de Arabela,
e a de Arabela é de Raul.

 

Cecilia Meireles, Ou isto ou aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Tanta tinta

cecilia meireles

Ah! Menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta…
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
Com tanta tinta?…)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpa a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta…

Ah! A menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!

 

Cecilia Meireles, Ou isto ou aquilo