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Cecília Meireles

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Natureza morta

Tinha uma carne de malmequeres, fina e translúcida,
com tênues veios de ametista, como o desenho sutil dos rios.
E ainda ficava mais branco, naquela varanda cheia de luar.

Os outros peixes nadavam gloriosos por dentro das ondas,
subiam, baixavam, corriam, brilhavam trêmulos de lua,
sem saberem daquele que não pertencia mais ao mar.

Deitado de perfil, em crespos verdes sossegados,
ia sendo servido, entre vinhos claros de altos copos,
envoltos numa gelada penugem de ar.

Seu olho de pérola baça, olho de gesso, consentia
que lhe fossem levando, pouco a pouco, todo o corpo…
E à luz do céu findava, e ao murmúrio do mar.

Cecilia Meireles, Antologia Poética

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Pescaria

cecilia meireles

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

Cecília Meireles, Ou isto ou aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 10

cecilia meireles

Este é o caminho de todos que virão. 
Para te louvarem. 
Para não te verem. 
Para te cobrirem de maldição. 
Os teus braços são muito curtos. 
E é larguíssimo este caminho. 
Com eles não poderás impedir 
Que passem, os que terão de passar, 
Nem que fiques de pé, 
Na mais alta montanha, 
Com os teus braços em cruz. 

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 9

cecilia meireles

Os teus ouvidos estão enganados. 
E os teus olhos. 
E as tuas mãos. 
E a tua boca anda mentindo 
Enganada pelos sentidos. 
Faze silêncio no teu corpo. 
E escuta-te. 
Há uma verdade silenciosa dentro de ti. 
A verdade sem palavras. 
Que procuras inutilmente, 
Há tanto tempo, 
Pelo teu corpo, que enlouqueceu. 

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 8

cecilia meireles

Não digas: “O mundo é belo” 
Quando foi que viste o mundo? 
Não digas: “O amor é triste”. 
Que é que tu conheces do amor? 
Não dias: “A vida é rápida”. 
Como foi que mediste a vida? 
Não digas: “Eu sofro”. 
Que é que dentro de ti és tu? 
Que foi que te ensinaram 
Que era sofrer? 

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 7

cecilia meireles

Não ames como os homens amam. 
Não ames com amor. 
Amor sem amor. 
Ama sem querer. 
Ama sem sentir. 
Ama como se fosses outro. 
Como se fosses amar. 
Sem esperar. 
Por não esperar. 
Tão separado do que ama, em ti, 
Que não te inquiete 
Se o amor leva à felicidade, 
Se leva à morte, 
Se leva a algum destino. 
Se te leva. 
E se vai, ele mesmo… 

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 6

cecilia meireles

Tu tens um medo: 
Acabar. 
Não vês que acabas todo dia. 
Que morres no amor. 
Na tristeza. 
Na dúvida. 
No desejo. 
Que te renovas todo dia. 
No amor. 
Na tristeza. 
Na dúvida. 
No desejo. 
Que és sempre outro. 
Que és sempre o mesmo. 
Que morrerás por idades imensas. 
Até não teres medo de morrer. 

E então serás eterno. 

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 5

cecilia meireles

Esse teu corpo é um fardo. 
È uma grande montanha abafando-te. 
Não te deixando sentir o vento livre 
Do Infinito. 
Quebra o teu corpo em cavernas 
Para dentro de ti rugir 
A força livre do ar. 
Destrói mais essa prisão de pedra. 
Faze-te recepo. 
Âmbito. 
Espaço. 
Amplia-te. 
Sê o grande sopro 
Que circula… 

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 4

cecilia meireles

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês,então,que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 3

cecilia meireles

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a terra.
Onde termina o Céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso.
Sem pensar.

Cecilia Meirelles, Cântico 

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cântico 2

cecilia meireles

Não sejas o de hoje. 
Não suspires por ontens… 
não queiras ser o de amanhã. 
Faze-te sem limites no tempo. 
Vê a tua vida em todas as origens. 
Em todas as existências. 
Em todas as mortes. 
E sabes que serás assim para sempre. 
Não queiras marcar a tua passagem. 
Ela prossegue: 
É a passagem que se continua. 
É a tua eternidade. 
És tu.

Cecilia Meireles, Cântico

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Cânticos 1

cecilia meireles

Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto, Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançar ás todos os horizontes.
Que o teu olhar,estando em toda a parte
Te ponha em tudo,
Como Deus.

Cecília Meireles, Cânticos

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Canção

cecilia meireles

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

 

Cecília Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Noite

cecilia meireles

ÚMIDO gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento…
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.

Cecilia Meireles, Viagem