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Clarice Lispector

Clarice Lispector

Clarice Lispector – Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

 

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.

Clarice Lispector

Clarice Lispector – Meu Deus, me dê coragem…

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios da tua presença
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude
Faça com que eu seja a tua amante humilde
entrelaçada a ti em êxtase
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala
Faça com que eu tenha a coragem de te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo
Faça com que a solidão não me destrua
Faça com que minha solidão
me sirva de companhia
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir como se estivesse
plena de tudo
Receba em teus braços o meu pecado de pensar

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida: pulsações

Clarice Lispector

Clarice Lispector – A lucidez perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma
lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não
se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa
lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano – já me aconteceu
antes. Pois sei que – em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve
para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto,
amém.

Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo