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Conceição Evaristo

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – Na esperança, o homem

Conceição Evaristo

Da cabeceira do rio, as águas viajantes
não desistem do percurso.
Sonham.

A seca explode no leito vazio
e a pele enrugada da terra seca e
sonha.

O barco espera.
O sábio contemplativo aguarda.
O homem, ao peso de qualquer lenho,
Não se curva.
Sonha.

Sonha e faz
com o suor de seu rosto,
com a água de seus olhos,
com a fluidez de sua alma,
cospe e cospe no solo
amolecendo a pedra bruta.

Faz e sonha.

E no outro dia, no amanhã de muitos
outros dias, a vida ressurge fértil,
úmida,
alimentada pelo seu hálito.

E que venham todas as secas,
o homem esperançoso
há de vencer.

Conceição Evaristo, Poemas da recordação

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – Os sonhos

Conceição Evaristo

Os sonhos foram banhados
nas águas das misérias
e derreteram-se todos.

Os sonhos foram moldados
a ferro e a fogo
e tomaram a forma do nada.

Os sonhos foram e foram.

Mas crianças com bocas de fome,
ávidas, ressuscitaram a vida
brincando anzóis nas correntezas
profundas.

E os sonhos, submersos
e disformes
avolumaram-se engrandecidos,
anelando-se uns aos outros
pulsaram como sangue-raiz
nas veias ressecadas
de um novo mundo.

Conceição Evaristo, Poema da recordação

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – Filhos na rua

Conceição Evaristo

O banzo renasce em mim.
Do negror de meus oceanos
a dor submerge revisitada
esfolando-me a pele
que se alevanta em sóis
e luas marcantes de um
tempo que aqui está.
O banzo renasce em mim
e a mulher da aldeia
pede e clama na chama negra
que lhe queima entre as pernas
o desejo de retomar
de recolher para
o seu útero-terra
as sementes
que o vento espalhou
pelas ruas…

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – Da calma e do silêncio

Conceição Evaristo

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – De mãe

Conceição Evaristo

O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.

A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.

Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.

Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.

Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – Eu-Mulher

Conceição Evaristo

Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo

Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

Conceição Evaristo, Poemas da Recordação e Outros Movimentos

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo – Recordar é preciso

Conceição Evaristo

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos