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Cora Coralina

Cora Coralina

Cora Coralina – A procura

cora coralina

Andei pelos caminhos da Vida.
Caminhei pelas ruas do Destino –
procurando meu signo.
Bati na porta da Fortuna,
mandou dizer que não estava.
Bati na porta da Fama,
falou que não podia atender.
Procurei a casa da Felicidade,
a vizinha da frente me informou
que ela tinha se mudado
sem deixar novo endereço.
Procurei a morada da Fortaleza.
Ela me fez entrar: deu-me veste nova,
perfumou-me os cabelos,
fez-me beber de seu vinho.
Acertei o meu caminho.

 

Cora Coralina, Meu livro de cordel 

Cora Coralina

Cora Coralina – Ofertas de Aninha (aos moços)

cora coralina

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
num corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

 

Cora Coralina, Vintém de cobre

Cora Coralina

Cora Coralina – Meu destino

cora coralina

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…

 

Cora Coralina, Meu livro de cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Estas mãos

cora coralina

Olha para estas mãos
de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.

Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras.

Mãos que jamais calçaram luvas.
Nunca para elas o brilho dos anéis.
Minha pequenina aliança.
Um dia o chamado heroico emocionante:
– Dei Ouro para o Bem de São Paulo.

Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam
roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.

Íntimas da economia,
do arroz e do feijão
da sua casa.
Do tacho de cobre.
Da panela de barro.
Da acha de lenha.
Da cinza da fornalha.
Que encestavam o velho barreleiro
e faziam sabão.

Minhas mãos doceiras…
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar,
ajudar, unir e abençoar.

Mãos de semeador…
Afeitas à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes
Procurando a terra.
Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.

Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida.

Mãos alavancas
na escava de construções inconclusas.

Mãos pequenas e curtas de mulher
que nunca encontrou nada na vida.
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Sozinha a procurar,
o ângulo prometido,
a pedra rejeitada.

 

Cora Coralina, Meu livro de cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Misticismos

cora coralina

I

A terra é templo.
O lavrador é semeador.
A lavoura é altar.
O grão é oferta.

II

O lavrador e sua fala econômica:
– Se Deus quisé.
– A Deus querê.
– Graças a Deus.
Repostando tudo a Deus –
quando lucra.
Quando perde:
– Seja feita a vontade de Deus.

III

Assim atravessa a vida, gera filhos
sem restrições.
Nada sabe de explosão demográfica.
Pobres, disse Jesus:
Sempre os tereis entre vós.

 

Cora Coralina, Meu livro de cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Humildade

cora coralina

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.

E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

 

Cora Coralina, Meu livro de cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – O Cântico da Terra

cora coralina

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranquila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranquilo dormirás.

Estribilho
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.

 

Cora Coralina, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

Cora Coralina

Cora Coralina – Pablo Neruda (III)

cora coralina

Poeta. Quando te foste para sempre
plangeram os sinos da
terra e silvaram todas as sirenas
dando aviso no universo.

Partiu-se o fio de ouro filigrana
da tua poesia universal.
Em que estrela remota
terá pousado tua cabeça
de poeta total?

Grande cantor das Américas,
domador insigne desse potro
bravio que descantas.
Indomado ao buçal e ao freio
com que tentam quebrar
sua rebeldia xucra.

Grande poeta.
Teu corpo gélido vai se desintegrando
molécula após molécula
na terra fria de Temuco,
e vai se integrando de novo
no grande todo universal.
E eu o vejo comandando
no etéreo todos os potros
indomados da Terra.

 

Cora Coralina, Meu Livro de Cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Pablo Neruda (II)

cora coralina

Poeta. Partiu-se para sempre
a cadeia de ouro que enleava
tua cabeça, teus braços
e torso de gigante.

Manda um raio de tua fronte ungida
à minha inteligência oclusa,
à minha mente obtusa.

Amarrada em cordas grossas.
Pássaro depenado em sujo cativeiro,
Asa cortada de impossível voo.

Minha pequenina poesia…
Pobre, se arrastando no esforço
de alguém que pela vida
vai empurrando,

vai rolando um tronco pesado
de madeira encharcado,
sem valor e sem destino.
Manda-me de Temuco,
onde pousaste para sempre,
uma pluma de tuas asas abatidas
para que eu possa alcançar com ela
acima,
muito acima
do meu voo curto e rasteiro.

 

Cora Coralina, Meu livro de cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Mutações

cora coralina

Muita rua da cidade
mudou de nome.
Ritintin – mudou de nome.
Chafariz – mudou de nome.
Rua Nova – mudou de nome.
Detrás da Abadia também.
Beco virou travessa.
Outras, nem nome têm.
Rua do Fogo se apagou,
nas vielas não se toca.
Beco da Morte é pecado.
Do Cotovelo é suspeito.
Rua Joaquim Rodrigues
virou 13 de Maio,
passou pra Joaquim de Bastos.
Não sei onde vai parar
tanta mudança de nome.
Mudar nome de rua é fácil.
Mudar jeito de rua, não.
Dar calçamento e limpeza
é coisa muito impossível.

Só não mudou nome em Goiás
o Beco da Vila Rica.
Por ser muito pobre e sujo
contrário lhe assenta o nome.
Se há de ser beco do sujo pobre
seja mesmo da Vila Rica
com toda sua pobreza.

 

Cora Coralina, Villa boa de Goiaz

Cora Coralina

Cora Coralina – Pablo Neruda I

cora coralina

Perdoa-me poeta.
Tão tarde o conheci!
Tantos cantores pelo mundo…
Para minha ignorância
eras mais um dentre eles.

Foi assim que não pedi a Deus
poupar-te a vida
e ficares para sempre
semente viva, incorruptível,
de beleza excelsa e universal.

Ninguém me disse antes.
Ninguém me disse nada.
Ninguém me fez a doação fraterna
de um livro teu.

Perdida no meu sertão goiano,
Só o teu nome, Pablo
Só o teu apelido crespo, Neruda,
Chegaram a mim…
E eu a pensar que foste apenas
um grande poeta entre outros grandes…

Foi assim que não pedi ao Criador
Poupar-te a vida
e ficares para sempre.

Semente viva e luminosa,
sementeira e semeador,
semeando o pão e o vinho
da tua poesia
na terra faminta, desolada e triste.

 

Cora Coralina, Meu Livro de Cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Lua-Luar

cora coralina

Escuto leve batida.
Levanto descalça, abro a janela
devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.

Entra lua poesia
antes dos astronautas:
Gagarin da terra azul,
Apolo XI que primeiro passeou solo lunar.

Lua que comanda os mares,
a fúria dos vagalhões
que vêm morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.

Lua dos namorados,
das intrigas de amor,
dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.

Lua nova, incompleta no seu meio arco.
Lua crescente, velha, enorme, fecunda.
Lua de todos os povos
de todos os quadrantes.

Lua que enfurece o mar em chumbo,
acovarda barcos pesqueiros.
O barqueiro se recolhe.

O pescado volta às redes.
O jangadeiro trava amarras.
Gaivotas fogem dos rochedos.

Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente,
andrógina – lua-luar.
Lua dos becos tristes
das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos.
Das velhas plantas sentenciadas.
Do sopro morto
dos bordões, rimas, violinos.

Lua que manda
na semeadura dos campos,
na germinação das sementes,
na abundância das colheitas.

Lua boa.
Lua ruim.
Lua de chuva.
Lua de sol.
Lua das gestações do amor.
Do acaso, do passatempo
irresistível,
responsável, irresponsável.

Lua grande. Lua genésica
que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito –
mal aceito: repudiado, abandonado.
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante
deixada em porta alheia.

 

Cora Coralina, Meu Livro de Cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Mulher da vida

cora coralina

Mulher da Vida,
Minha irmã.

De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da Vida,
Minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.

Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.

Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre
por aqueles que um dia
as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas.
Escorchadas. Discriminadas.

Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como a erva cativa
dos caminhos,
pisadas, maltradas e renascidas.

Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria,
da pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes
da Terra.

Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens
que a tinham maculado. Aflita, ouvindo
o tropel dos perseguidores e o sibilo
das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa
e lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.

As pedras caíram
e os cobradores deram as costas.

O Justo falou então a palavra
de equidade:
“Ninguém te condenou, mulher… nem
eu te condeno”.

A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios
detém as urgências brutais do homem
para que na sociedade
possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.

Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.

Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.

Mulher da Vida,
Minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco
em novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrutível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.

Mulher da Vida,
Minha irmã.

Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, 31.

Cora Coralina, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.

Cora Coralina

Cora Coralina – Das Pedras

cora coralina

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina, Meu Livro de Cordel

Cora Coralina

Cora Coralina – Antiguidades

cora coralina

Quando eu era menina 
bem pequena, 
em nossa casa, 
certos dias da semana 
se fazia um bolo, 
assado na panela 
com um testo de borralho em cima. 
Era um bolo econômico, 
como tudo, antigamente. 
Pesado, grosso, pastoso. 
(Por sinal que muito ruim.) 
Eu era menina em crescimento. 
Gulosa, 
abria os olhos para aquele bolo 
que me parecia tão bom 
e tão gostoso. 
A gente mandona lá de casa 
cortava aquele bolo 
com importância. 
Com atenção. 
Seriamente. 
Eu presente. 
Com vontade de comer o bolo todo. 
Era só olhos e boca e desejo 
daquele bolo inteiro. 

Minha irmão mais velha 
governava. Regrava. 
Me dava uma fatia, 
tão fina, tão delgada… 
E fatias iguais às outras manas. 
E que ninguém pedisse mais! 
E o bolo inteiro, 
quase intangível, 
se guardava bem guardado, 
com cuidado, 
num armário, alto, fechado, 
impossível. 
Era aquilo uma coisa de respeito. 
Não pra ser comido 
assim, sem mais nem menos. 
Destinava-se às visitas da noite, 
certas ou imprevistas. 
Detestadas da meninada. 
Criança, no meu tempo de criança, 
não valia mesmo nada. 
A gente grande da casa 
usava e abusava 
de pretensos direitos 
de educação. 
Por dá-cá-aquela-palha, 
ralhos e beliscão. 
Palmatória e chineladas 
não faltavam. 
Quando não, 
sentada no canto de castigo 
fazendo trancinhas, 
amarrando abrolhos. 
“Tomando propósito” 
Expressão muito corrente e pedagógica. 
Aquela gente antiga, 
passadiça, era assim: 
severa, ralhadeira. 
Não poupava as crianças. 
Mas, as visitas… 
– Valha-me Deus!… 
As visitas… 
Como eram queridas, 
recebidas, estimadas, 
conceituadas, agradadas! 
Era gente superenjoada. 
Solene, empertigada. 
De velhas conversas 
que davam sono. 
Antiguidades… 
Até os nomes, que não se percam: 
D. Aninha com Seu Quinquim. 
D. Milécia, sempre às voltas 
com receitas de bolo, assuntos 
de licores e pudins. 
D. Benedita com sua filha Lili. 
D. Benedita – alta, magrinha. 
Lili – baixota, gordinha. 
Puxava de uma perna e fazia crochê. 
E, diziam dela línguas viperinas: 
“- Lili é a bengala de D. Benedita”. 
Mestre Quina, D. Luisalves, 
Saninha de Bili, Sá Mônica. 
Gente do Cônego Padre Pio. 
D. Joaquina Amâncio… 
Dessa então me lembro bem. 
Era amiga do peito de minha bisavó. 
Aparecia em nossa casa 
quando o relógio dos frades 
tinha já marcado 9 horas 
e a corneta do quartel, tocado silêncio. 
E só se ia quando o galo cantava. 
O pessoal da casa, 
como era de bom-tom, 
se revezava fazendo sala. 
Rendidos de sono, davam o fora. 
No fim, só ficava mesmo, firme, 
minha bisavó. 
D. Joaquina era uma velha 
grossa, rombuda, aparatosa. 
Esquisita. 
Demorona. 
Cega de um olho. 
Gostava de flores e de vestido novo. 
Tinha seu dinheiro de contado. 
Grossas contas de ouro 
no pescoço. 
Anéis pelos dedos. 
Bichas nas orelhas. 
Pitava na palha. 
Cheirava rapé. 
E era de Paracatu. 
O sobrinho que a acompanhava, 
enquanto a tia conversava 
contando “causos” infindáveis, 
dormia estirado 
no banco da varanda. 
Eu fazia força de ficar acordada 
esperando a descida certa 
do bolo 
encerrado no armário alto. 
E quando este aparecia, 
vencida pelo sono já dormia. 

E sonhava com o imenso armário 
cheio de grandes bolos 
ao meu alcance. 
De manhã cedo 
quando acordava, 
estremunhada, 
com a boca amarga, 
– ai de mim – 
via com tristeza, 
sobre a mesa: 
xícaras sujas de café, 
pontas queimadas de cigarro. 
O prato vazio, onde esteve o bolo, 
e um cheiro enjoado de rapé. 

Cora Coralina, Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais