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Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – O banho de xampu

Elizabeth Bishop

Os liquens – silenciosas explosões
nas pedras – crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
com os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.

E como o céu há de nos dar guarida
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.

No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
– Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.

Elizabeth Bishop, Poemas escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Canção do tempo das chuvas

Elizabeth Bishop

Oculta, oculta,
na névoa, na nuvem,
a casa que é nossa,
sob a rocha magnética,
exposta a chuva e arco-íris,
onde pousam corujas
e brotam bromélias
negras de sangue, liquens
e a felpa das cascatas,
vizinhas, íntimas.

Numa obscura era
de água
o riacho canta de dentro
da caixa torácica
das samambaias gigantes;
por entre a mata grossa
o vapor sobe, sem esforço,
e vira para trás, e envolve
rocha e casa
numa nuvem só nossa.

À noite, no telhado,
gotas cegas escorrem,
e a coruja canta sua copla
e nos prova
que sabe contar:
cinco vezes — sempre cinco —
bate o pé e decola
atrás das rãs gordas, que
coaxam de amor
em plena cópula.

Casa, casa aberta
para o orvalho branco
e a alvorada cor
de leite, doce à vista;
para o convívio franco
com lesma, traça,
camundongo
e mariposas grandes;
com uma parede para o mapa
ignorante do bolor;

escurecida e manchada
pelo toque cálido
e morno do hálito,
maculada, querida,
alegra-te! Que em outra era
tudo será diferente.
(Ah, diferença que mata,
ou intimida, boa parte
da nossa mínima, humilde
vida!) Sem água

a grande rocha ficará
desmagnetizada, nua
de arco-íris e chuva,
e o ar que acaricia
e a neblina
desaparecerão;
as corujas irão embora,
e todas as cascatas
hão de murchar ao sol
do eterno verão.

Elizabeth Bishop – Questões de viagem

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Tempestade com raios

Elizabeth Bishop

O dia raia, amarelo azedo.
Cra-aac! — brilho forte e seco.
A casa foi atingida.
Crac! Um estalo, como um copo que cai.
Tobias saltou do parapeito, foi para a cama —
silencioso, os olhos brancos, o pelo eriçado.
Pirracento como filho de vizinho,
o trovão ficou sovando o telhado.
Um raio róseo;
depois granizo, enormes pérolas artificiais.
Branco morto, branco de cera, frias —
suvenires de um jantar formal
de antigamente, lá na lua —
ficaram a derreter enfileiradas
no chão vermelho mesmo depois que o sol nasceu.
Ao levantarmos, a fiação estava fundida,
faltava luz, cheirava a salitre
e o telefone, mudo.

O gato ficou nos lençóis ainda mornos.
As quaresmeiras perderam suas pétalas:
molhadas, roxas, caídas entre as pérolas de olhos mortos.

Elizabeth Bishop, Questões de viagem

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Chegada em Santos

Elizabeth Bishop

Eis uma costa; eis um porto;
após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:
morros de formas nada práticas, cheios — quem sabe? — de autocomiseração,
tristes e agrestes sob a frívola folhagem,
uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,
alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,
e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turista,
então é isso que este país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada menos
que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato
e definitivo entendimento de ambos
após dezoito dias de hiato?
Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,
uma estranha e antiga embarcação,
com um trapo estranho e colorido ao vento.
A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão
de que não havia bandeira, mas tinha que haver,
tal como cédulas e moedas — claro que sim.
E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,
eu e uma outra passageira, Miss Breen,
num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam
um carregamento de café que não tem mais fim.
Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!
não é que ele fisgou a saia de Miss Breen,
coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,
um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem
simpática. É tenente de polícia aposentada.
Quando não está viajando, mora em Glen
s Falls, estado de Nova York. Bom. Conseguimos.
Na alfândega deve haver quem fale inglês e não
implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.
Os portos são necessários, como os selos e o sabão,
e nem ligam para a impressão que causam.
Daí as cores mortas dos sabonetes e selos —
aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam
de nossos cartões-postais antes que possam lê-los
nossos destinatários, ou porque a cola daqui
é muito ordinária, ou então por causa do calor.
Partimos de Santos imediatamente;
vamos de carro para o interior.

Elizabeth Bishop, Questões de viagem

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Dormindo no Teto

Elizabeth Bishop

É tão tranquilo aqui no teto!
Aqui é a Place de la Concorde.
O lampadário — o chafariz —
está apagado, escuro, frio.
O parque está vazio.

Embaixo, na parede, um rasgo no papel:
o Jardin des Plantes fechou os portões.
Essas fotografias são os bichos.
Farfalham flores, folhas e gravetos;
sob as plantas, cavam túneis os insetos.

Abandonemos chafariz e praça
e entremos embaixo do papel,
armados de rede e de tridente,
para enfrentar o gladiador-inseto.
Mas, quem dera poder dormir no teto…

Elizabeth Bishop, Poemas escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Sonho de verão

Elizabeth Bishop

Aquele cais afundado
recebia poucos barcos.
Lá viviam dois gigantes,
uma anã, um retardado,

um lojista, que toda a manhã
cochilava em seu balcão,
e a simpática senhoria —
a costureira dela era a anã.

O retardado passava o dia
colhendo amoras, para distrair-se,
mas depois as jogava fora.
A costureira miúda sorria.

Nossa pensão, à beira-mar,
azul como uma cavalinha,
era riscada, feito o rosto
de quem acabou de chorar.

Gerânios extraordinários
transbordavam das janelas,
e no assoalho reluziam
linóleos de tipos vários.

À noite a gente escutava
o pio do mocho-orelhudo.
À luz do lampião de óleo
o papel de parede brilhava.

A senhoria simpática
tinha um filho, um gigante gago,
que subia a escada recitando
trechos de uma velha gramática.

Vivia emburrado, o sujeito,
mas a mãe dele era alegre.
O nosso quarto era frio,
e o colchão de penas, estreito.

No escuro, a gente acordava
com o riacho sonâmbulo
que, desaguando no mar,
em voz alta, ainda sonhava.

Elizabeth Bishop, Poemas escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Insônia

Elizabeth Bishop

A lua no espelho do psichê
contempla milhões, milhões de milhas,
(de si mesma orgulhosa pode ser,
porém ela jamais, jamais sorri)
desertas extensões além do sono,
ou talvez ela durma só de dia.

Se por acaso a abandonasse o Universo
ela sim, o mandaria ao inferno
e um espelho d’água encontraria,
ou um outro qualquer, onde viver.
Enrola teus cuidados numa teia
de aranha e joga-os, pois, dentro do poço,

para o mundo de ponta cabeça,
onde a mão esquerda sempre é direita,
onde as sombras são o corpo real,
onde estamos despertos toda a noite,
onde os céus são tão rasos quanto os mares
são profundos, e onde agora tu me amas.

Elizabeth Bishop, Poemas

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Elizabeth Bishop – Noturno

Elizabeth Bishop

Da manga escura de um mágico
os cantores de rádio
espalham canções de amor
pela grama, sobre o orvalho noturno.
E preveem para o futuro,
qual cartomantes, o que se quiser supor.

Mas na antena do estaleiro distingo
observadores mais dignos
de apreciar o amor. Do alto de seu galho
cinco luzes vermelhas, remotas,
se aninham; fênix silenciosas,
ardendo aonde nunca chega o orvalho.

Elizabeth Bishop, Poemas escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Cirque d´Hiver

Elizabeth Bishop

É um brinquedo de corda digno de um rei
de uma outra era: cavalo e bailarina.
Um cavalo de circo, de olhos negros,
branco no pelo e na crina
Sobre ele vai montada a bailarina.

Na ponta dos pés, ela rodopia.
Tem um ramo de flores artificiais
na saia e no corpete de ouropel.
Sobre a cabeça, traz
um outro ramo de flores artificiais

A cauda do cavalo é puro Chirico.
É formal e melancólica sua alma.
Ele sente em seu dorso a perna leve
da bailarina calma
em torno da haste que a perfura, corpo e alma,

e lhe atravessa o corpo, saindo por fim
sob seu ventre como uma chave de lata.
Ele dá três passos, faz uma mesura,
anda mais um pouco, dobra uma das patas,
anda, estala, para e olha para mim.

A dançarina, a essa altura, está de costas.
O cavalo é o mais arguto dos dois.
Entreolhamo-nos, com certo desespero,
e dizemos depois:
“É, até aqui chegamos nós dois”.

Elizabeth Bishop, Poemas escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – O Cavalheiro de Shalott

Elizabeth Bishop

Qual olho é o dele?
Qual membro é real
e qual está no espelho?
A cor é igual
à esquerda e à direita,
e ninguém suspeita
que esta ou aquela
perna, ou braço, seja
verdade ou impostura
nessa estranha estrutura.
A seu ver,
isso é prova garantida
de uma imagem refletida
ao longo desta linha
que chamamos de espinha.

Modesto, sentia
que sua pessoa
era metade espelho:
pois duplicar-se seria
um total destrambelho.
O vidro se prolonga
por sua mediana,
ou melhor, sua borda.
Mas ele não sabe direito
o que está dentro ou fora
da imagem refletida.
Não há muita margem de erro,
mas provar é impossível.
E se meio cérebro é reflexo
seu pensamento terá nexo?
Mas ele aceita sem problema
a parcimônia do esquema.
Se o espelho escorregar
vai ser de amargar —
só uma perna etc. Mas por ora
está apoiado na escora,
e ele anda e corre e pega a mão
com a outra. A sensação
de incerteza o deixa feliz,
ele diz.
Afirma também que gosta
de estar sempre a se reajustar.
No momento, eis o que tem a declarar:
“Metade basta.”

Elizabeth Bishop, Poemas Escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – O Iceberg Imaginário

Elizabeth Bishop

O iceberg nos atrai mais que o navio,
mesmo acabando com a viagem.
Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,
e o mar um mármore revolto.
O iceberg nos atrai mais que o navio:
queremos esse chão vivo de neve,
mesmo com as velas do navio tombadas
qual neve indissoluta sobre a água.
Ó calmo campo flutuante,
sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez pastar na tua neve?

Esta cena um marujo daria os olhos
pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg
sobe e desce; seus píncaros de vidro
corrigem elípticas no céu.
Este cenário empresta a quem o pisa
uma retórica fácil. O pano leve
é levantado por cordas finíssimas
de aéreas espirais de neve.
Duelo de argúcia entre as alvas agulhas
e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e incerto onde se assenta.

É por dentro que o iceberg se faceta.
Tal como joias numa tumba
ele se salva para sempre, e adorna
só a si, talvez também as neves
que nos assombram tanto sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos, e o navio
segue viagem, e as ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um céu mais quente.

O iceberg seduz a alma
(pois os dois se inventam do quase invisível)
a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.

Elizabeth Bishop, Poemas Escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – Chemin de Fer

Elizabeth Bishop

Sozinha nos trilhos eu ia,
coração aos saltos no peito.
O espaço entre os dormentes
era excessivo, ou muito estreito.

Paisagem empobrecida:
carvalhos, pinheiros franzinos;
e além da folhagem cinzenta
vi luzir ao longe o laguinho

onde vive o eremita sujo,
como uma lágrima translúcida
a conter seus sofrimentos
ao longo dos anos, lúcida.

O eremita deu um tiro
e uma árvore balançou.
O laguinho estremeceu.
Sua galinha cocoricou.

Bradou o velho eremita:
“Amor tem que ser posto em prática!”
Ao longe, um eco esboçou
sua adesão, não muito enfática.

Elizabeth Bishop, Poemas Escolhidos

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop – O mapa

Elizabeth Bishop

Terra entre águas, sombreada de verde.
Sombras, talvez rasos, lhe traçam o contorno,
uma linha de recifes, algas como adorno,
riscando o azul singelo com seu verde.
Ou a terra avança sobre o mar e o levanta
e abarca, sem bulir suas águas lentas?
Ao longo das praias pardacentas
será que a terra puxa o mar e o levanta?

A sombra da Terra Nova jaz imóvel.
O Labrador é amarelo, onde o esquimó sonhador
o untou de óleo. Afagamos essas belas baías,
em vitrines, como se fossem florir, ou como se
para servir de aquário a peixes invisíveis.
Os nomes dos portos se espraiam pelo mar,
os nomes das cidades sobem as serras vizinhas
— aqui o impressor experimentou um sentimento semelhante
ao da emoção ultrapassando demais a sua causa.
As penínsulas pegam a água entre polegar e indicador
como mulheres apalpando pano antes de comprar.

As águas mapeadas são mais tranquilas que a terra,
e lhe emprestam sua forma ondulada:
a lebre da Noruega corre para o sul, afobada,
perfis investigam o mar, onde há terra.
É compulsório, ou os países escolhem as suas cores?
— As mais condizentes com a nação ou as águas nacionais.
Topografia é imparcial; norte e oeste são iguais.
Mais sutis que as do historiador são do cartógrafo as cores.

Elizabeth Bishop, Poemas Escolhidos