Browsing Category

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Enguiço

flora figueiredo

Eis um amor que bate à porta
em hora imprópria.
Ousado, liga a lâmpada frouxa,
joga a trouxa de roupa ainda manchada
do sangue das costas lanhadas.
Impõe cadeado no portão,
como se não fosse sair mais,
caminha decidido sobre minha paz.
Esse temido amor de hora errada
já vem assobiando pelo corredor.
O trinco da porta é fraco
e não sustenta;
a oração é rala e pouco aguenta,
o medo é pequeno e permissivo.
A tal amor que chega inoportuno,
eu me condeno.
Porque me condeno é que me sinto vivo.

Flora Figueiredo, Amor a céu aberto

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Subida

flora figueiredo

Quando o dia acorda atravessado,
escalo uma montanha.
É meu próprio caminho em direção ao sol.
Mochila nas costas, carrego o principal;
não levo nem perguntas, nem respostas.
Ponho um ramo de sonhos
que vou plantando pelo caminho,
a flauta encantada
pra seduzir passarinho,
a estrela companheira
que brilha o tempo inteiro
e mantém a trilha luminosa;
um frasco de água benta,
uma reza certeira;
um arco-iris à prova de nada.
Devagarzinho, sem pressionar o tempo,
chego ao meu destino.
Respiro fundo, abro os braços,
canto um hino de sagração ao mundo
— e agradeço —
por ter descoberto de repente
por onde se começa o recomeço.

Flora Figueiredo, O trem que traz a noite

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Bom-senso

flora figueiredo

Hoje não vou,
que é dia ruim de decisão:
o ninho apareceu cheio de ovos,
o vaso me presenteou com botões novos,
a lua fez alongamentos verdes sobre o mar.
Dia de emoção não é dia de ir.
Quem sabe amanhã amanhece chovendo
e eu fico matemática.

Flora Figueiredo, Chão de vento

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Roda pião

flora figueiredo

Olhinhos extasiados,
ele observa o pião
gira-girar acelerado.
Colorido,
o brinquedo se enrola no corpo listrado
e roda como bailarina
a esvoaçar o tule do vestido.
Aos poucos, se cansa,
arrefece,
perde a força,
cessa a dança.
No desencanto dos olhos da criança,
a ciranda do pião
reflete a própria vida:
ao girar em volta de si mesmo,
retorna sempre ao ponto de partida


Flora Figueiredo, Limão Rosa

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Indomável

flora figueiredo

Sem água morna,
sem pedra mole,
nem fogo brando.
Amor quando chega,
tem que vir arrebatando,
virando a mesa,
rompendo a porta.
Amor que se preza
agarra a vida na marra
e desentorta;
abraça a hora com força
e desamassa.
Vem certo de ficar, vai indo embora;
vem pensando em partir, mas vai ficando.
Sempre confundindo, é certo-errando
que deixa tudo fora do lugar.
… e quanto mais o peito resistir,

o tanto mais vai explodir de muito amar.

 

 

Flora Figueiredo, Chão de vento

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Duplicidade

flora figueiredo

Eu te pressinto
correndo a meu lado
e te admito.
Gosto do teu sorriso sem conflito,
tua trança
que balança frouxa contra o vento.
Acostumei-me a te levar comigo
pelos meus sucessos
e nos contratempos.
Eu me desculpo pelos meus excessos.
Há espaço pra nós duas,
suficiente
para poder te manter irreverente,
apoiada
na minha metade equilibrada.
Assim me encosto
na textura sem rugas de teu rosto.
Se houver um quase nada
de divergência,
é melhor prevalecer a tua inconsequência,
que é nosso lado mais sadio.
Se por acaso houver um desafio,
há de vencer-me a ingenuidade
que evaporou no tempo,
que decorou nos tons da meia-idade
Mas, quando um dia confrotarmos
nossas diferenças,
quero que se sobreponha
por sobre minha face mais tristonha
a tua liberdade mais traquina.
Eu te dou a mão num gesto de ternura,
porque te quero sábia,
porque me quero pura.
Meio mulher madura,

meio menina.

Flora Figueiredo, Chão de vento

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Pés

flora figueiredo

Conheço minhas pegadas, de tanto ir e vir.
Às vezes pisam fundo
como carregassem o peso do mundo;
às vezes ficam amassadas
sob o descuido das outras pegadas.
Sobre elas, a lua nova desdobra sua saia
em cena de nudez no chão da praia.
Só perco meus passos na maré cheia:
essa mania do mar de tirar seus sapatos sobre a areia.
Conheço bem minhas pegadas.
Sou capaz de identificá-la em qualquer lugar.

Se ao menos eu soubesse aonde vão me levar…

Flora Figueiredo, Chão de Vento

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Análise

flora figueiredo

Estou te requisitando para uma experiência
em favor da vida,
em prol do futuro,
em nome da Ciência.
Para chegar à dedução final,
é fundamental
justapor tua célula à minha.
Se tudo acontecer como previsto,
como foi delineado no papel,
devo ser o próximo Nobel de Biologia.
Reza a teoria em questão
que um plasma esfregado em outro plasma
é o primeiro fator de combustão.


Flora Figueiredo, Amor a céu aberto

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Tratado manso de loucura

flora figueiredo

Como amo a paz de estar comigo!
Essa fusão de alma-umbigo,
esse roteiro quente do meu sangue.
Eu que conheço cada palmo dos meus passos,
que me retenho e me disponho.
Faço dos versos meu avesso,
dos adversos, meu passado,
das alegrias, meu recomeço.
Deito liquefeita e, de repente,
amanheço solidificada.
Sou água, sou pedra,
às vezes nuvem,
às vezes nada.
Por ser inconstante e difusa,
enrolo e desenrolo essa vida
num movimento mágico e confuso,
admito ser ou não ser
e ser assim.
Como é bom sentir-me tão querida,
tão bem-amada e tão dividida,

eu resolvida inteiramente por mim!

Flora Figueiredo, Florescência

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Trajeto

flora figueiredo

Pressenti você por onde andei:
nas páginas da história que reli,
nos respingos da lua que bebi,
em meio às contas dos rosários que rezei.

Bem que eu tentei mudar de assunto:
alterei o roteiro da viagem,
colhi alfazemas na paisagem,
dedilhei valsas, decorei poemas.
Você veio junto.

Apostei no vento que chegou de fora
e levou meu passado embora
numa lufada larga e radical.
Mas quando chego ao destino,
ouço saudades na frase de um violino

e percebo seu beijo em meu porto final.

Flora Figueiredo, O trem que traz a noite

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Cadeira de balanço

flora figueiredo

Vai chegar o dia
de minha cadeira balançar
vazia;
vai se aquietar o Noturno de Chopin
que toca sempre ao meu lado;
vai se quedar dobrado
o clássico jornal do café da manhã.
Provavelmente hão de permanecer
histórias divertidas,
ensinamentos,
brigas e arrependimentos,
problemas que dividimos,
parcerias que fizemos,
o doce que sempre repartimos,
os amargos que muitas vezes nós comemos.
Devem sobrar nas prateleiras
guirlandas e claves
caídas das cirandas,
que rodaram com a meninice.
Para vocês pode parecer tolice,
mas um dia
elas engrossaram de amor
a minha biografia.
Remendem a meia furada na ponta,
motivo de tanta discussão;
continuem tendo por perto
a lata de aveia
para quando o intestino não der certo;
é bom insistir na sopa de feijão.
Apagar a luz ao sair,
escovar os dentes antes de dormir.
Mas, acima de tudo, nunca dispersar.
Sei que a vida separa e distancia,
mas mantenham-se unidos
seja qual for o lugar
que cada um deva ocupar na geografia.
Nunca contrários,
nem bipartidos.
O destino gosta de rolar suas maldades
sobre sangues divididos,
sobre irmãos adversários.
Tomara que eu tenha sucedido
ao costurar com fio de eternidade
a alça pulsante de cada coração.
Do canto etéreo em que estiver guardada,
vou me alegrar por essa equipe tão amada, mandar a benção feita de plumas e
algodão.

Flora Figueiredo, Amor a céu aberto

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Vento novo

flora figueiredo

Estava enrolada
em teias e traças,
debaixo da escada,
lá no subsolo
da casa fechada.
Começava a tomar ares de desgraça.
Manchada do tempo,
fenecia
a esperar que um dia
alguma coisa acontecesse.
Antes que se perdesse completamente,
sentiu passar um vento cor-de-rosa.
Toda prosa, espanou a bruma,
pintou os lábios
e sem vergonha nenhuma
caprichou no recorte do decote.
A felicidade volta à praça
cheia de dengo e de graça,

com perfume novo no cangote.

Flora Figueiredo, Amor a céu aberto

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Epiderme

flora figueiredo

Você não precisa ser tão doce
nem me azeitar tanto,
nem me embebedar dos cantos das
sereias.
Você não precisa fazer coisas
adoravelmente feias
para me subjugar.
Deixe apenas a pele falar com veemência,
que dela me alimento,
com devoção e dependência,
que nela me visto
e arrisco viver subcutânea.
Núcleo,
barro,
cerne,
massa.
Colada ao plasma,
a cada célula que se destaque e se desfaça,
assim como uma liga,
feito visgo,
feito viga.
Você não precisa se empenhar
para me fazer render subordinada,
se sua pele me mantém amalgamada
como se nascera talvez do seu olhar.
Você não precisa mesmo fazer nada.
Basta estar.

Flora Figueiredo, Amor a céu aberto

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Para machucar um pouco

flora figueiredo

Vou buscar a poesia onde ela estiver,
fazê-la deitar subjugada,
tênue,
passiva,
mansa,
mulher.
Quero-a solta e lassiva,
aberta e deflorada,
para fazer dela o que eu quiser.
Hei de dominá-la totalmente,
levá-la a gozar até a embriaguez.
Feita minha serva e dependente,
vou ofertá-la ao seu deleite.
Por favor, aceite.
Quero que ela o faça chorar outra vez.

Flora Figueiredo, Amor a céu aberto

Flora Figueiredo

Flora Figueiredo – Catavento

flora figueiredo

A cada esquina,
há um cheiro de verão
que me entontece,
afaga,
contamina.
já não sei mais a direção.
Que sorte a minha perder o Norte!
Se os meus pontos cardeais
fossem definidos,
não caberia esse amor tão proibido,
que sofre, goza muito e pede mais.

Flora Figueiredo, O trem que traz a noite