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Guerra Junqueiro

Guerra Junqueiro

Guerra Junqueira – Eu que tenho no olhar…

Eu que tenho no olhar o incoercível dente
que aguilhoa da carne os sonhos bestiais,
e tenho as atrações nervosas da serpente
com que Jeová tentou nossos primeiros pais;

eu, a mulher perdida, a cínica indolente,
a torpe barregã de olhos sentimentais,
que ando de mão em mão escandalosamente
como as cartas de jogo e os livros sensuais;

eu, negra flor do mal, silenciosa e calma,
eu, que cheguei a ter escrófulas na alma
e abri um lupanar dentro do coração;

ao ver teu olhar, o teu olhar sombrio,
ó canalha gentil, ó pálido vadio,
eu, que desprezo o amor, amo-te, D. João!

Guerra Junqueiro, Livro dos sonetos

Guerra Junqueiro

Guerra Junqueiro – Mater

Se a morte, d’olhar grave e pensativo,
Dissesse à mãe piedosa de Jesus:
“Teu filho é homem nos teus braços, vivo:
Morto, teu filho será Deus na Cruz.

Em teus braços deseja-lo cativo,
Ou morto e Deus, jorrando sangue a flux,
E a toda a angústia dando um lenitivo
E a toda a escuridão perpétua luz?”

Que respondera, em lagrimoso anseio,
Cravado o olhar nos astros sempiternos,
A mãe de Cristo unindo o filho ao seio?

Desprenderia de seus braços ternos
O filho amado? Talvez não!… Dizei-o,
Dizeio-o vós ó corações maternos!…

 

Guerra Junqueiro, Cinco séculos de sonetos Portugueses

Guerra Junqueiro

Guerra Junqueiro – Elegia

A alegria da vida, essa alegria d’oiro
A pouco e pouco em mim vai-se extinguindo, vai…
Melros alegres de bico loiro,
Ó melros negros, cantai, cantai!

Ando lívido, arrasto o pobre corpo exangue,
Que era feito da luz das claras madrugadas…
Rosas vermelhas da cor do sangue,
Rosas abri-vos às gargalhadas!

Limpidez virginal, graça d’Anacreonte,
Mimo, frescura, força, onde é que estais?… não sei!…
Ó águas vivas, águas do monte,
Ó águas puras, correi, correi!

Eu sinto-me prostrado em lânguido desmaio,
E a minha fronte verga exausta para o chão…
Cedros altivos, sem medo ao raio,
Cedros erguei-vos pela amplidão!

 

Guerra Junqueiro, Poesias Dispersas

Guerra Junqueiro

Guerra Junqueiro – Canção de batalha

Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a lua branca e fria…
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado as terras fumegantes…

Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d’arsenais;
É bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais!

Acendei a fornalha enorme — a Inspiração.
Dai-lhe lenha, — A Verdade, a Justiça, o Direito —
E harmonia e pureza, e febre, e indignação;
E pra que a lavareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!

Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora…
Queimemo-nos a nós, iluminando a terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!

Guerra Junqueiro, Poesias Dispersas