Eu que tenho no olhar o incoercível dente
que aguilhoa da carne os sonhos bestiais,
e tenho as atrações nervosas da serpente
com que Jeová tentou nossos primeiros pais;
eu, a mulher perdida, a cínica indolente,
a torpe barregã de olhos sentimentais,
que ando de mão em mão escandalosamente
como as cartas de jogo e os livros sensuais;
eu, negra flor do mal, silenciosa e calma,
eu, que cheguei a ter escrófulas na alma
e abri um lupanar dentro do coração;
ao ver teu olhar, o teu olhar sombrio,
ó canalha gentil, ó pálido vadio,
eu, que desprezo o amor, amo-te, D. João!
Guerra Junqueiro, Livro dos sonetos