Browsing Category

Ivan Junqueira

Ivan Junqueira

Ivan Junqueira – O poema

ivan junqueira

Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?

Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?

Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que o algema?

Ivan Junqueira, Poemas reunidos

Ivan Junqueira

Ivan Junqueira – Cinco movimentos – I

ivan junqueira

Que amor é esse que, desperto, dorme
e quando acorda faz-se ambíguo sonho,
transfigurando o belo no medonho
e em noite espessa a vida multiforme?
Então amor é só o que suponho,
o que não digo por ser tão informe
que fôrma alguma lhe é jamais conforme
como este molde em que teimoso o ponho?
Será amor o que se esquiva à fala
ou à linguagem que o pretende claro?
E o que seria esse tremor mais raro
que ao aflorar parece que se cala?
Amor oblíquo que olha de soslaio,
mas que ilumina e queima como raio…

Ivan Junqueira, Cinco movimentos

Ivan Junqueira

Ivan Junqueira – A árvore

ivan junqueira

A árvore era humilde e arqueada,
assim como os ombros de um inválido.
Mas dava sombra e ríspidas flores vermelhas.
E liquens e pássaros e abelhas.
Um dia, suas grossas raízes fenderam a calçada,
deixando à mostra as vísceras do pátio.
E então derrubaram-na a golpes de machado.
Sobre o piso refeito, polido e imaculado,
os cães urinam e defecam,
os transeuntes escarram e cospem suas pragas,
os ratos roem os restos de uma carcaça abandonada
e os mendigos se arrastam como vermes
rumo ao nada.

Ivan Junqueira, O outro lado

Ivan Junqueira

Ivan Junqueira – Prólogo

ivan junqueira

Eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.
Na infância, quando fui relva,
sentia os pés dos efebos
a calcar-me as frágeis vértebras
e colhia das donzelas
o frêmito que, venéreo,
era um augúrio da queda.

Depois, quando fui cipreste,
vi como o vento, em seus dédalos,
cingia-me a áspera testa
e tangia-me as ideias
que nos ramos, vãs quimeras,
pousavam como uma névoa,
úmidas ainda das trevas
e do abismo de que vieram.

Quando fui córrego, as pedras
me ensinaram que o critério
do que em tudo permanece
nunca está nelas, inertes,
mas nas águas que se mexem
com vário e distinto aspecto,
de modo que não repetem
o que antes foi (e era breve).

Quando enfim galguei o vértice
de alguém que eu mesmo não era,
compreendi que esse processo
de sermos outros (e até
termos em nós outro sexo)
nada em si tinha de inédito:
já se lia no evangelho
de um deus ambíguo e pretérito.

E assim fui sendo esse leque
de coisas fluidas e inquietas,
jamais levianas, bem certo,
mas antes, em seu trajeto,
vertentes as mais diversas
de uma só e única célula:
a da matriz que não é
senão seu próprio reverso.

Espelho de meus espectros,
urna de engodo e miséria,
alma sôfrega e sem tréguas,
osso escasso no deserto
onde jejua um profeta,
solidão, infâmia e tédio
— eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.

Ivan Junqueira, O outro lado