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João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Pirandello I

joao cabral de melo neto

A paisagem parece um cenário de teatro.
É uma paisagem arrumada.
Os homens passam tranquilamente
com a consciência de que estão representando.
Todos passam indiferentes
como se fosse a vida ela mesma.
O cachorro que atravessa a rua
e que deveria ser faminto
tem um ar calmo de sesta.
A vida ela própria não parece representada:
as nuvens correm no céu
mas eu estou certo de que a paisagem é artificial
eu que conheço a ordem do diretor:
—Não olhem para a objetiva!
e sei que os homens são grandes artistas
o cachorro é um grande artista.

João Cabral de Melo Neto, Selected Poetry

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – A bailarina

joao cabral de melo neto

A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.

A três horas de sono,
mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.

Entre monstros feitos
a tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pássaro.

Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar.

 

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Na cidade do Porto

joao cabral de melo neto

Numa dessas tardes vazias,
em que só se está, não se vive,
da janela que dá para a rua,
comercial, consular e triste,

vi passar, entre as que passavam,
uma mulher de andar sevilha:
o esbelto pisar decidido
que carrega a cabeça erguida,

cabeça que é, soberana,
de quando a espiga mais se espiga,
que carrega como uma chama
negra, e apesar disso acendida,

que a mulher dali não conhece:
que é a da mulher da calle Feria,
que é onde as mulheres da plebe
passam com porte de duquesas.

 

João Cabral de Melo Neto, A literatura como turismo

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – As nuvens

joao cabral de melo neto

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;

são estátuas em voo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
e países de vento;

são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;

são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos.

 

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Na cidade do Porto

joao cabral de melo neto

Numa dessas tardes vazias,
em que só se está, não se vive,
da janela que dá para a rua,
comercial, consular e triste,

vi passar, entre as que passavam,
uma mulher de andar sevilha:
o esbelto pisar decidido
que carrega a cabeça erguida,

cabeça que é, soberana,
de quando a espiga mais se espiga,
que carrega como uma chama
negra, e apesar disso acendida,

que a mulher dali não conhece:
que é a da mulher da calle Feria,
que é onde as mulheres da plebe
passam com porte de duquesas.

 

João Cabral de Melo Neto, A Literatura como turista

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Janelas

joao cabral de melo neto

Há um homem sonhando
numa praia; um outro
que nunca sabe as datas;
há um homem fugindo
de uma árvore; outro que perdeu
seu barco ou seu chapéu;
há um homem que é soldado;
outro que faz de avião;
outro que vai esquecendo
sua hora seu mistério
seu medo da palavra véu;
e em forma de navio
há ainda um que adormeceu.

 

João Cabral de Melo Neto, Poemas para ler na escola

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Dois estudos

joao cabral de melo neto

I

Tu és a antecipação
do último filme que assistirei.
Fazes calar os astros,
os rádios e as multidões na praça pública.
Eu te assisto imóvel e indiferente.
A cada momento tu te voltas
e lanças no meu encalço
máquinas monstruosas que envenenam reservatórios sobre os quais ganhaste um
domínio de morte.
Trazes encerradas entre os dedos
reservas formidáveis de dinamite
e de fatos diversos.

II

Tu não representas as 24 horas de um dia, os fatos diversos,
o livro e o jornal
que leio neste momento.
Tu os completas e os transcendes.
Tu és completamente revolucionária e criminosa, porque sob teu manto
e sob os pássaros de teu chapéu
desconheço a minha rua,
o meu amigo e o meu cavalo de sela.

 

João Cabral de Melo Neto, Poemas para ler na Escola

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – A literatura como turismo

joao cabral de melo neto

Certos autores são capazes
de criar o espaço onde se pode
habitar muitas horas boas:
um espaço-tempo, como o bosque.

Onde se ir nos fins de semana,
de férias, até de aposentar-se:
de tudo há nas casas de campo
de Camilo, Zé Lins, Proust, Hardy.

A linha entre ler conviver
se dissolve como em milagre;
não nos dão seus municípios,
mas outra nacionalidade,

até o ponto em que ler ser lido
é já impossível de mapear-se:
se lê ou se habita Alberti?
se habita ou soletra Cádis?

João Cabral de Melo Neto, A literatura como turismo

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Autobiografia de um só dia

joao cabral de melo neto

No Engenho Poço não nasci: 
minha mãe, na véspera de mim, 

veio de lá para a Jaqueira, 
que era onde, queiram ou não queiram, 

os netos tinham de nascer, 
no quarto-avós, frente à maré. 

Ou porque chegássemos tarde 
(não porque quisesse apressar-me, 

e se soubesse o que teria 
de tédio à frente, abortaria) 

ou porque o doutor deu-me quandos, 
minha mãe no quarto-dos-santos, 

misto de santuário e capela, 
lá dormiria, até que para ela, 

fizessem cedo no outro dia 
o quarto onde os netos nasciam. 

Porém em pleno Céu de gesso, 
naquela madrugada mesmo, 

nascemos eu e minha morte, 
contra o ritual daquela Corte 

que nada de um homem sabia: 
que ao nascer esperneia, grita. 

Parido no quarto-dos-santos, 
sem querer, nasci blasfemando, 

pois são blasfêmias sangue e grito 
em meio à freirice de lírios, 

mesmo se explodem (gritos, sangue), 
de chácara entre marés, mangues. 

João Cabral de Melo Neto, A Literatura como Turismo

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Catar feijão

joao cabral de melo neto

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

João Cabral de Melo Neto, A Educação pela pedra