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Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – O labirinto

jorge luis borges

Nem Zeus desataria essas redes
de pedra que me cercam. Olvidado
dos homens que antes fui, sigo o odiado
caminho de monótonas paredes
que é meu destino. Retas galerias
encurvando-se em círculos secretos
com o passar dos anos. Parapeitos
que se racharam na usura dos dias.
Já decifrei no pó esbranquiçado
rastros que temo. Tenho percebido
no ar das côncavas tardes um rugido
ou o eco de um rugido desolado.
Sei que na sombra há Outro, cuja sorte
é exaurir as solidões sem fim
que este Hades fiam e desfiam,
sugar meu sangue e devorar minha morte.
Nós dois nos procuramos. Quem me dera
fosse este o dia último da espera.

Jorge Luis Borges, Nova antologia pessoal

Jorge Luis Borges

Jorge Luís Borges – Arte poética

jorge luis borges

Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,

na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.

Jorge Luís Borges, O fazedor

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – A um poeta menor da antologia

jorge luis borges

A memória dos dias onde está 
dos que na terra foram teus, tecendo 
dor e alegria e foram para ti o universo?

O rio numerável desses anos 
já os perdeu; tu és uma palavra em um índice.

Deram a outros glória interminável os deuses,
inscrições e exergos e monumentos e pontuais historiadores; 
de ti nós só sabemos, obscuro amigo, 
que ouviste o rouxinol, uma tarde.

Por entre os asfódelos da sombra, tua vã sombra 
pensará que os deuses foram avaros.

Porém os dias são uma rede de triviais misérias, 
e haverá melhor sorte que a cinza 
de que está feito o olvido?

Os deuses sobre outros atiraram 
a inexorável luz da glória, que observa as entranhas e enumera as gretas, 
da glória, que acaba por murchar a rosa que venera; 
foram contigo mais piedosos, irmão.

No êxtase de um entardecer que não será uma noite, 
ouves a voz do rouxinol de Teócrito.

Jorge Luis Borges, O Outro, o Mesmo

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – O sul

jorge luis borges

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
de um banco na sombra ter olhado
essas luzes dispersas,
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
no secreto poço,
o aroma de jasmim e madressilva,
o silêncio do pássaro que dorme,
o arco do saguão, a umidade
— essas coisas, talvez, são o poema.

Jorge Luis Borges, Primeira poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – As ruas

jorge luis borges

As ruas de Buenos Aires
já são minhas entranhas.
Não as ávidas ruas,
incômodas de gente e de bulício,
mas as ruas indolentes do bairro,
quase invisíveis de tão usuais,
enternecidas de penumbra e de ocaso
e aquelas mais ao longe
carentes de árvores piedosas
onde austeras casinhas apenas se aventuram,
abrumadas por imortais distâncias,
a perder-se na profunda visão
de céu e de lhanura.
São para o solitário uma promessa
porque milhares de almas singulares as povoam,
únicas perante Deus e no tempo
e sem dúvida preciosas.
A Oeste, ao Norte e ao Sul
desdobraram-se — e também são a pátria — as ruas;
tomara que nos versos que traço
estejam essas bandeiras.

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – O passado

jorge luis borges

Tudo era fácil, nos parece agora,
Naquele plástico ontem irrevogável:
Sócrates, que, apurada a cicuta,
Discorre sobre a alma e seu caminho,
Enquanto a morte azul lhe vai subindo
Pelos pés regelados; a implacável
Espada que retumba na balança;
Roma, que impõe o numeroso hexâmetro
Ao obstinado mármore dessa língua
Que manejamos hoje, espedaçada;
Os piratas de Hengist que atravessam
A remo o temerário mar do Norte
E com as fortes mãos e a coragem
Fundam um reino que será o Império;
O rei saxão que oferta ao da Noruega
Sete palmos de terra e que cumpre,
Antes que o sol decline, a promessa
Na batalha de homens; os cavaleiros
Do deserto, que cobrem o Oriente
E ameaçam as cúpulas da Rússia;
Um persa que relata a primeira
Das Mil e uma noites e não sabe
Que deu início a um livro que os séculos
Das outras gerações, ulteriores,
Não entregarão ao quieto esquecimento;
Snorri, que salva em sua perdida Tule,
Sob a luz de crepúsculos morosos
Ou na noite propícia à memória,
As letras e os deuses da Germânia;
O jovem Schopenhauer, que descobre
Um projeto geral do universo;
Whitman, que numa redação do Brooklyn,
Entre o cheiro de tinta e de tabaco,
Toma e a ninguém conta a infinita
Resolução de ser todos os homens
E de um livro escrever que seja todos;
Arredondo, que mata Idiarte Borda
Em certa manhã de Montevidéu
E se entrega à justiça, declarando
Ter agido sozinho e não ter cúmplices;
O soldado que morre em chão normando,
O que na Galiléia encontra a morte.

Essas coisas podiam não ter sido.
Quase não foram. Nós as concebemos
Em um ontem fatal e inevitável.
Não há outro tempo que o agora, este ápice
Do já será e do foi, daquele instante
Em que a gota cai na clepsidra.
O ontem ilusório é um recinto
De imutáveis figuras de cera
Ou de reminiscências literárias
Que o tempo irá perdendo em seus espelhos.
Carlos xii, Breno, Érico, o Vermelho,
E a tarde inapreensível que foi tua
Na eternidade são, não na memória.


Jorge Luis Borges, Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – A um velho poeta

jorge luis borges

Caminhas pelo campo de Castela
e quase não o vês. Um intrincado
versículo de João é teu cuidado
e mal percebes a luz amarela

do pôr do sol. A vaga luz delira
e nos confins do Leste se dilata
essa lua de escárnio e de escarlata
que talvez seja o espelho da Ira.

O olhar elevas e a contemplas. Uma
memória de algo que foi teu começa
e se dissipa. A pálida cabeça

curvas e segues caminhando triste,
sem recordar o verso que escreveste:
seu epitáfio a sangrenta lua.

Jorge Luis Borges, Antologia pessoal

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – New England, 1967

jorge luis borges

Transformaram-se as formas de meu sonho;
são hoje o casario rubro e inclinado,
são o bronze das folhas, delicado,
e o casto inverno e o piedoso lenho.
Como no dia sétimo, é a terra
propícia. Nos crepúsculos persiste
algo que é quase nada, ousado e triste,
um antigo rumor de Bíblia e guerra.
Não demora a chegar (dizem) a neve
e a América me espera em cada esquina,
mas sinto nessa tarde que declina
o hoje tão lento e o ontem muito breve.
Buenos Aires, eu sigo caminhando
por tuas esquinas, sem por que nem quando.

Jorge Luis Borges, Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Um livro

jorge luis borges

Apenas uma coisa entre as coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
Som e fúria e noite e escarlate.
Minha palma a sopesa. Quem diria
Que contém o inferno: as barbadas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as leis da sombra,
E o ar delicado do castelo
Que vai ver-te morrer, a delicada
Mão capaz de ensangüentar os oceanos,
A espada e o clamor de uma batalha.

Esse tumulto silencioso dorme
No espaço de um daqueles livros
Da sossegada estante. Dorme e espera.

Jorge Luis Borges, Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Ao espelho

jorge luis borges

Por que persistes, incessante espelho?
Por que repetes, misterioso irmão,
O menor movimento de minha mão?
Por que na sombra o súbito reflexo?
És o outro eu sobre o qual fala o grego
E desde sempre espreitas. Na brunidura
Da água incerta ou do cristal que dura
Me buscas e é inútil estar cego.
O fato de não te ver e saber-te
Te agrega horror, coisa de magia que ousas
Multiplicar a cifra dessas coisas
Que somos e que abarcam nossa sorte.
Quando eu estiver morto, copiarás outro
e depois outro, e outro, e outro, e outro…

Jorge Luis Borges, Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Poema da quantidade

jorge luis borges

Penso nesse parco céu puritano
De solitárias e perdidas luzes
Que Emerson olharia tantas noites
Em meio à neve e ao rigor de Concord.
Aqui são excessivas as estrelas.
O homem é excessivo. As gerações
Inúmeras de aves e de insetos,
Do jaguar constelado e da serpente,
De galhos que se tecem e entretecem,
Do café, da areia e das folhas
Oprimem as manhãs e nos prodigam
Seu minucioso labirinto inútil.
Talvez cada formiga que pisamos
Seja única ante Deus, que a define
Para a execução das regulares
Leis que regem Seu curioso mundo.
Não fosse assim, o universo inteiro
Seria um erro e um oneroso caos.
Os espelhos do ébano e da água,
O espelho inventivo de um sonho,
Os liquens e os peixes, as madréporas,
Tartarugas alinhadas no tempo,
Os vaga-lumes de uma única tarde,
As araucárias e suas dinastias,
As perfiladas letras de um volume
Que a noite não apaga são sem dúvida
Não menos pessoais e enigmáticas
Que eu, que as confundo. Não me atrevo
A julgar nem a lepra nem Calígula.

Jorge Luis Borges, Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – A rosa

jorge luis borges

a imarcescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que ressurge da mais ténue
cinza pela arte da alquimia,
a rosa de Ariosto ou a dos Persas,
a que está sempre só,
aquela que é sempre a rosa das rosas,
a jovem flor platônica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inatingível.

Jorge Luis Borges,Obra Poética Vol. 1

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – A praça San Martín

jorge luis borges

À procura da tarde
fui perscrutando inutilmente as ruas.
Os saguões já estavam entrevados de sombra.
Com fino polimento de mogno
a tarde inteira remansara-se na praça,
serena e sazonada,
benfazeja e sutil como uma lâmpada,
clara como uma fronte,
grave como o gesto de um homem enlutado.
Todo sentir se aquieta
sob a absolvição das árvores
— jacarandás, acácias —
cujas curvas piedosas
amenizam a rigidez da impossível estátua
e em cuja rede se enaltece
a glória das luzes equidistantes
do leve azul, da terra avermelhada.
Que bela vê-se a tarde
do singelo sossego de seus bancos!
Lá embaixo
o porto almeja latitudes distantes
e a profunda praça igualadora de almas
abre-se como a morte, como o sonho.

 

Jorge Luis Borges, Primeira poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Rua desconhecida

jorge luis borges

De penumbra da pomba
chamaram os hebreus a iniciação da tarde,
quando a sombra não entorpece os passos
e o anoitecer é percebido
como uma música esperada e antiga,
como um grato declive.
Nessa hora em que a luz
tem a finura da areia,
dei com uma rua ignorada,
nobre em sua largura de terraço,
cujas cornijas e paredes mostravam
cores suaves como o próprio céu
que comovia o fundo.
Tudo — a mediania das casas,
as modestas balaustradas e aldravas,
talvez uma esperança de menina nas sacadas —
entrou em meu inútil coração
com limpidez de lágrima.
Talvez essa hora da tarde prateada
concedesse à rua sua ternura,
tornando-a tão real quanto um verso
esquecido e resgatado.
Só depois ponderei
que aquela rua ignorava a tarde,
que toda casa é um candelabro
onde as vidas dos homens ardem
como velas isoladas,
que todo impensado passo nosso
caminha sobre Gólgotas.

 

Jorge Luis Borges, Primeira poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Uma oração

jorge luis borges

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada.

Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam os olhos seria uma loucura; sei de milhares de pessoas que veem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias.

O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que sem rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre.

Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase nada afeta.

A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo.

Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore.

Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

 

Jorge Luis Borges, Poesia