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Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Despedida

jorge luis borges

Entre meu amor e mim hão de se levantar
trezentas noites como trezentos muros
e o mar será magia entre nós.

Não haverá senão recordações.
Oh tardes merecidas pela dor,
noites esperançosas de te olhar,
campos de meu caminho, firmamento
que estou vendo e perdendo…
Definitiva como um mármore
a tua ausência fará tristes outras tardes.

 

Jorge Luis Borges, Primeira Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – A sentinela

jorge luis borges

Entra a luz e eu me lembro; está ali.
Começa por dizer-me seu nome, que é (logo se entende)
o meu.
Volto à escravidão que durou mais de sete vezes dez anos.
Impõe-me sua memória.
Impõe-me as misérias de cada dia, a condição humana.
Sou seu velho enfermeiro; obriga-me a lavar os seus pés.
Espreita-me nos espelhos, no mogno, nos vidros das lojas.
Uma ou outra mulher o rejeitou e devo compartilhar sua
angústia.
Dita-me agora este poema, que não me agrada.
Exige-me o nebuloso aprendizado do duro anglo-saxão.
Converteu-me ao culto idolátrico de militares mortos, com os
quais talvez não pudesse trocar uma única palavra.
No último lanço de escada sinto que está a meu lado.
Está em meus passos, em minha voz.
Minuciosamente o odeio.
Percebo com prazer que quase não vê.
Estou em uma cela circular e a infinita parede se estreita.
Nenhum dos dois engana o outro, mas nós dois mentimos.
Conhecemo-nos demais, inseparável irmão.
Bebes a água de meu copo e devoras meu pão.
A porta do suicida está aberta, mas os teólogos afirmam que
na sombra ulterior do outro reino estarei eu, me esperando.

Jorge Luis Borges, Poesia

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Nuvens I

jorge luis borges

Não haverá uma só coisa que não dê ideia
de uma nuvem. O são as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o templo renderá. O é a Odisseia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.

Jorge Luis Borges, Os Conjurados 

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Do inferno e do céu

jorge luis borges

O Inferno de Deus não necessita
o resplendor do fogo. Quando o Juízo
Universal retumbar nas trombetas,
a terra tornar públicas as vísceras,
do pó ressuscitarem as nações
para acatar a Boca inapelável,
os olhos não verão os nove círculos
da montanha invertida; nem os pálidos
prados e seus asfódelos perenes
onde a sombra do arqueiro então persegue,
eternamente, a sombra ágil da corça;
nem a loba de fogo que no ínfimo
pavimento do inferno muçulmano
é anterior a Adão e aos castigos;
nem violentos metais e nem sequer
mesmo a visível treva de John Milton.
Não pesará odiado labirinto
de triplo ferro e fogo doloroso
sobre as almas atônitas dos réprobos.

Nem o fundo dos anos também guarda
um remoto jardim. Deus não requer,
para alegrar os méritos do justo,
orbes de luz, concêntricas teorias
de tronos, potestades, querubins,
nem o espelho ilusório de uma música
nem as profundidades de uma rosa
nem o fulgor aziago de um somente
de Seus tigres, tampouco o delicado
de um ocaso amarelo no deserto,
nem o sabor natal, antigo da água.
Em Sua misericórdia, nem jardins
nem luz de uma esperança ou de lembrança.

No cristal de um sonho eu vislumbrei
o Céu e o Inferno todo prometidos:
ao retumbar o Juízo nas trombetas
últimas e o planeta milenário
for esquecido e bruscas já cessarem
ó Tempo! tuas efêmeras pirâmides,
teu colorido e linhas do passado
definirão na treva um rosto imóvel,
adormecido, fiel, inalterável
(o da amada talvez, quiçá o teu)
e a contemplação desse incorruptível
rosto contíguo, intacto e incessante
há de ser, para os réprobos, Inferno,
porém para os eleitos, Paraíso.

1942.

Jorge Luis Borges, O outro, o mesmo

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – A noite cíclica

jorge luis borges

A Sylvina Bullrich

Sabiam-no os árduos alunos de Pitágoras:
As estrelas e os homens voltam ciclicamente;
Os átomos fatais repetirão a urgente
Afrodite de ouro e os tebanos e as ágoras.

Em idades futuras oprimirá o centauro
O coração do lápita ao solípede casco;
Quando Roma for pó, na infinda noite, com asco
Gemerá, no palácio fétido, o minotauro.

Toda a noite em minúcias insone há de volver.
A mão que isto redige renascerá do igual
Ventre. Férreas armadas erguerão o abissal.
(David Hume de Edimburgo o mesmo quis dizer.)

Não sei se voltaremos em um ciclo segundo,
Como voltam as cifras de uma fração periódica;
Sei, porém, que uma obscura rotação pitagórica
Noite após noite deixa-me em um lugar do mundo.

Que pertence aos bairros. Uma esquina esquecida
Que pode ser do norte, do sul, talvez do oeste,
Que apresenta, porém, sempre uma taipa celeste,
A figueira sombria e uma vereda rompida.

Aí está Buenos Aires. O tempo, presenteando
Com ouro ou amor os homens, a mim apenas deixa
Esta rosa apagada ou esta inútil madeixa
De ruas que ecoam nomes mortos, evocando

Em meu sangue: Laprida, Cabrera, Soler, Suárez…
Nomes em que retumbam (já secretas) as dianas,
Repúblicas, cavalos garbosos, as campanas
Das felizes vitórias, as mortes militares.

As praças demarcadas na noite sem senhor
São os profundos pátios de um árido palácio
E suas ruas unânimes que engendram o espaço,
Corredores de sonho e de confuso temor.

Volta a noite côncava que decifra Anaxágoras;
Volta-me à carne humana a eternidade constante
E a lembrança, o projeto? de um poema incessante:
“Sabiam-no os árduos alunos de Pitágoras…”

1940.

Jorge Luis Borges, O outro, o mesmo

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Insônia

jorge luis borges

De ferro,
de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,
para que não a rebentem e a desenraízem
as muitas coisas que meus abarrotados olhos viram,
as duras coisas que insuportavelmente a povoam.

Meu corpo fatigou os níveis, as temperaturas, as luzes:
em vagões de extensos trilhos,
em um banquete de homens que se detestam,
no fio rompido dos subúrbios,
em uma quinta quente de estátuas úmidas,
na noite repleta onde abundam o cavalo e o homem.

O universo desta noite contém a vastidão
do esquecimento e a precisão da febre.

Quero em vão distrair-me do corpo
e do desvelar de um espelho incessante
que o prodigalize e que o espreite
e da casa que repete seus pátios
e do mundo que segue até um despedaçado subúrbio
de becos onde o vento se cansa e de barro torpe.

Em vão espero
as desintegrações e os símbolos que precedem o sonho.

Segue a história universal:
os rumos minuciosos da morte nas cáries dentárias,
a circulação de meu sangue e dos planetas.

(Odiei a água crapulosa de um charco,
detestei, ao entardecer, o canto do pássaro.)

As fatigadas léguas incessantes do subúrbio do Sul,
léguas de pampa lixeira e obscena, léguas de execração
não querem abandonar a memória.

Lotes pantanosos, ranchos amontoados como cães, charcos de prata fétida:
sou a detestável sentinela dessas colocações imóveis.
Arame, terraplenos, papéis mortos, sobras de Buenos Aires.

Creio esta noite na terrível imortalidade:
nenhum homem morreu no tempo, nem mulher, nenhum morto,
porque esta inevitável realidade de ferro e de barro
tem de atravessar a indiferença de quantos estejam adormecidos ou mortos
— ainda que se ocultem na corrupção e nos séculos –
e condená-los à vigília espantosa.

Toscas nuvens cor de borra de vinho infamarão o céu;
há de amanhecer em minhas pálpebras apertadas.
Adrogué, 1936.

Jorge Luis Borges, O outro, o mesmo

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Cristo na cruz

jorge luis borges

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. É o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
E áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D’Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?

Kyoto, 1984

Jorge Luis Borges, Os Conjurados

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Inscrição

jorge luis borges

Escrever um poema é ensaiar uma magia menor. O instrumento dessa magia, a linguagem, é assaz misterioso. Nada sabemos de sua origem. Só sabemos que se ramifica em idiomas e que cada um deles consta de um indefinido e mutante vocabulário, e de uma cifra indefinida de possibilidades sintáticas. Com esses inacessíveis elementos formei este livro. (No poema, a cadência e o ambiente de uma palavra podem pesar mais do que o sentido.) Seu é este livro, Maria Kodama. Será preciso que lhe diga que essa inscrição compreende os crepúsculos, os cervos de Nara, a noite que está só e as populosas manhãs, as ilhas compartidas, os mares, os desertos e os jardins, o que perde o olvido e o que a memória transforma, a alta voz do muezin, a morte de Hawkwood, os livros e as lâminas?
Só podemos dar o que já foi dado. Só podemos dar o que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. Que mistério é uma dedicatória, uma entrega de símbolos!

Jorge Luis Borges, Os Conjurados

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges – Sou

jorge luis borges

Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.

Jorge Luis Borges, A Rosa Profunda