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Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá – Lápides

Jorge Reis-Sá

Para que todo o universo brilhe a uma só voz
lá fora a noite assiste a mesa com que somos
nós, dois, três, quatro, cinco filhos foram mas
não nasceram, uma noite a nossa escuridão,

filhos que morreram sem terem sido, amor perdido,
choros em vão. A morte é aquela interrupção. Que
seria desta casa elevada ao cubo, livros na garagem
para ganhar um pequenino coração? Fim. Adeus.

Terminou. O menino morreu. A menina desapareceu.
Quem foi não chegou. Como podemos nós perder
quem nunca nos veio a pertencer? Chega de solidão,
chega de pensar no que morreu, a vida é o que foi,

passado e memória, não futuro. Esse não existe, nem
quando à noite o universo nos assiste. A morte é a curva
na estrada. É sempre preciso um poema para inundar
de impossibilidade uma tristeza sempre inacabada.

Jorge Reis-Sá, Pátio

Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá – Queria Tanto Ligar-te

Jorge Reis-Sá

Queria tanto ligar-te
que me digas que errei, o que certo fiz
ao pensar-te, onde por esquecer-te falhei

Queria tanto ligar-te
ouvir dizer-te e dizer ouvir-te
que o rio triste se alegrasse
por lembrar-te, ligar-te sob a lápide
por criar-te outra vez, por juntar-te

Queria tanto ligar-te
e ouvir chamar o número
que teu seria, mas ninguém viu
o que haveria de chamar-te
há segredos
que só a ti para dizer-te
pai

Queria tanto ligar-te
e dizer-te, mas a noite cai
e o silêncio

Queria tanto dizer-te
vinte anos depois alegrar-te
mas tu sabes e eu sei
sem ti não há como imaginar-te

Queria tanto dizer-te cada erro
meu é uma falha da tua ausência
não sou forte para sentir
sempre de ti a presença

Queria tanto ligar-te
que me digas que errei, o que certo fiz
ao pensar-te, onde por esquecer-te falhei

Jorge Reis-Sá, Pátio

Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá – Pátio

Jorge Reis-Sá

Estive para ser entregue a Deus desde pequeno.
Não em sacrifício, como o frango que a minha avó
ainda mata nas traseiras da casa, golpe certeiro
no pescoço, o sangue a escorrer para a bacia
para que depois se junte ao arroz solto, à noite.
Estive para ser entregue a Deus com a batina
imaculada de um padre, entregue a Nosso Senhor
por oração e valência espiritual, há-de ser este
o menino, Manel, dizia minha avó a meu pai,

cheia de esperança. Estive por ela, pelo meu pai,
que chegou a usar batina no seminário, e por mim,
tal o encanto das coisas sagradas. A minha avó

no pátio a olhar para a entrada da casa dizia, rapaz,
vamos à missa das dez e meia como se ao céu, e eu
aprendiz de feiticeiro a ajudar à missa como gente
grande, juntando as migalhas das hóstias com Deus
Nosso Senhor ao lado. Estive para ser entregue a Deus

e sentia ser esse o meu destino. Ainda hoje, quando
no fim de jantar limpo a banca – a louça na máquina,
a hóstia celebrada no pão nosso de cada dia –, dobro
silencioso o pano da cozinha como um paramento.

Recito: graças e louvores se dêem a todo o momento.
E ouço: ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento.

Jorge Reis-Sá, Pátio

Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá – David Bowie [heroes]

Jorge Reis-Sá

Não é do pai que falo — do amigo. Das conversas
que ficaram por cumprir porque a morte se interpôs
e as não permitiu. Do Lancia Delta que eu achava nos
idos anos noventa o carro mais lindo do mundo e que
ele, sapiente, retorquiu numa viagem luminosa

é demasiado semelhante a uma carrinha. O meu pai
não gostava de carrinhas. Mas não é dele que falo –
do amigo. Aquele que à entrada da salinha me via
vibrar como David Bowie a cantar I, I wish you could
swim, like dolphins, like dolphins can swim, vestido

de verde-alface. O David Bowie é o único homem
no mundo a quem um fato verde-alface fica bem.
O meu pai o único que consegue ficar para sempre
à entrada da salinha.


Jorge Reis-Sá, Pátio