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José Paulo Paes

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Poema Circense

josé paulo paes

Atirei meu coração às areias do circo como se atira ao
mar uma âncora aflita. Ninguém bateu palmas.
O trapezista sorriu, o leão farejou-me desdenhosamente,
o palhaço zombou de minha sombra fatídica.

Só a pequena bailarina compreendeu. Em sua mãos
de opala, meu coração refletia as nuvens de outono,
os jogos de infância, as vozes populares.

Depois de muitas quedas, aprendi. Sei agora vestir,
com razoável destreza, os risos da hiena, a frágil polidez
dos elefantes, a elegância marinha dos corcéis.

Todavia, quando as luzes se apagam, readquiro antigos
poderes e voo. Voo para um mundo sem espelhos falsos,
onde o sol devolve a cada coisa a sombra natural
e onde não há aplausos, porque tudo é justo, porque
tudo é bom.

José Paulo Paes, Melhores poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Pequeno retrato

josé paulo paes

Nunca vislumbrei
No momento exíguo,
No dia contigo,
O dia contíguo.

Sempre desprezei
A estrela sinistra,
O falso zodíaco,
A esfera de cristal
E o terceiro aviso
Do galo matinal.

Como submeter
O desejo ao fado,
Se todo prazer
Ri da cautela,
Ri do cuidado,
Que o quer prender?

Vou despreocupado,
Dora, tão despreocupado,
Que nem sei morrer.

José Paulo Paes, Melhores poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Canção sensata

josé paulo paes

Dora, que importa
O juiz que escreve
Exemplos na areia,
Se livres seguimos
O rastro dos faunos,
A voz das sereias?

Dora, que importa
A herança do avô
Sob a pedra, nua,
Se do ar colhemos
Moedas de sol,
Guirlandas de lua?

Dora, que importa
Esse frágil muro
Que defende os cautos,
Se além do pequeno
Há horizontes loucos,
De que somos arautos?

De maior beleza
É, pois, nada prever
E à fina incerteza
De amor ou viagem
Abrir nossa porta.

José Paulo Paes, Melhores poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – O aluno

josé paulo paes

São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode.
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

José Paulo Paes, Melhores poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – O poeta e seu mestre

josé paulo paes

Tiro da sua cartola
repleta de astros,
mil sobrenaturais
paisagens de infância.

Sua bengalinha
queima os ditadores,
destrói as muralhas
libertando os anjos.

Calço seu sapato
e eis que percorro
a branca anatomia
de pássaros e flores.

Repito seus gestos
de amor e renúncia,
de música ou luta,
de solidariedade.

Carlitos!

Teu bigode é a ponte
que nos liga ao sonho
e ao jardim tão perto.

José Paulo Paes, Melhores Poemas José Paulo Paes,
Seleção Davi Arrigucci Jr.

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Balada

josé paulo paes

Folha enrugada,
poeira nos livros.
A pena se arrasta
no esforço inútil
de libertação.
Nenhuma vontade,
nem mesmo desejo
na tarde cinzenta.

A árvore seca
esperando seiva
não tem paisagem.
Na frente é o deserto
coberto de pedras.
Nem sombra de oásis.
Pobre árvore seca
na tarde cinzenta!

Se houvesse um castelo
com torres e dama
de loiros cabelos,
talvez eu fizesse
algum madrigal.

Mas a dama morreu,
os castelos se foram
na tarde cinzenta!

O caminho se alonga
por entre montanhas,
por campos e vales.
Talvez me conduza
ao roteiro perdido
no fundo do mar.
Mas estou tão cansado
na tarde cinzenta!

Não sou lobo da estepe;
amo a todos os homens
e suporto as mulheres.
Contudo não posso
falar com os lábios,
amar com o sexo,
porque sinto a tortura
da tarde cinzenta!

Só me restam os livros.
Vou ficar com eles
esperando que chegue
do fundo da noite,
das sombras do tempo,
oh! imenso mar,
vem me libertar
da tarde cinzenta!

José Paulo Paes, Melhores poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Canção do afogado

josé paulo paes

Esta corda de ferro
me aperta a cabeça,
não deixa meus braços
se erguerem no ar.
E o mar me rodeia,
afoga meus olhos.

Maninha me salve
não posso chorar!

Minha mão está presa
na corda de ferro
e os dedos não tocam
a rosa que desce,
que afunda sorrindo
nas águas do mar.

Maninha me salve
não posso nadar!

Algas flutuam
por entre os cabelos,
meus lábios de sangue
palpitam na sombra

e a voz esmagada
não pode fugir.

Maninha me salve
não posso falar!

E a rosa liberta,
a inefável rosa,
vai longe, vai longe.
Um gesto é inútil,
meu grito e meu pranto
inúteis também…

Maninha me salve
que eu vou naufragar!


José Paulo Paes, Melhores poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Still life

josé paulo paes

Paisagem de fundo
geometricamente ordenada
pelas barras da porta.

As folhas novas
do arbusto,
a coluna impositiva
do relógio de sol,
a touceira (via láctea
doméstica) dos copos-de-leite.

E, encostadas ao muro,
as folhas do antúrio
feito máscaras de deuses
implacáveis,
felizmente ainda
(ganhaste mais um dia!)
benignos.

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Momento

josé paulo paes

Visto assim do alto
no cair da tarde
o automóvel imóvel
sob os galhos da árvore
parece estar rumo
a algum outro lugar
onde abolida a própria
idéia de viagem
as coisas pudessem
livremente se entregar
ao gosto inato
da dissolução — e é noite.

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Glauco

josé paulo paes

Nas duas vezes que voltei a Curitiba
não o encontrei.
Numa tinha viajado para o Rio
na outra tinha viajado para a morte.

E nem havia mais onde encontrá-lo:
o Belas Artes fechara
a redação de O Dia sumira-se no ar
as pensões eram terrenos baldios.

Desarvorado me sentei à mesa
de uma confeitaria na esperança — vã —
de que algum sobrevivente de outros tempos
viesse dar notícias dele.

Só a caminho do aeroporto tive
um relance dos seus óculos kavafianos
mas sem os olhos risonhos
por detrás das lentes:

livres embora da miopia do corpo
seus olhos continuavam no encalço
da eterna
fugaz
inatingível
Beleza Adolescente.

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Atenção, detetive

josé paulo paes

Se você for detetive,
descubra por mim
que ladrão roubou o cofre
do banco do jardim
e que padre disse amém
para o amendoim,

Se você for detetive,
faça um bom trabalho:
me encontre o dentista
que arrancou o dente do alho
e a vassoura sabida
que deixou a louca varrida.

Se você for detetive,
um último lembrete:
onde foi que esconderam
as mangas do colete
e quem matou os piolhos
da cabeça do alfinete?

 

José Paulo Paes, Poemas para brincar

José Paulo Paes

José Paulo Paes – A braços com um problema

josé paulo paes

Acordei quando senti meu braço esquerdo soltar-se do ombro a que sempre
estivera preso.

Que transtorno!

No dia seguinte eu precisava comparecer ao meu baile de formatura.
Como explicar a repentina desaparição do braço?

Embrulhei-o numa folha de jornal e saí à procura do médico
da cidade. Não estava em casa, tinha ido para o clube.

Lá não me deixaram entrar com o pacote. Poderia ser uma
bomba e estava-se às vésperas da eleição da nova diretoria.

Voltei desolado para casa. Deitei-me e tentei soldar o braço
com um pouco do sangue que ainda não secara de todo.

Pelo jeito deu certo. Quando tornei a acordar, surpreendi-me
abafando com a mão esquerda um bocejo de astuta satisfação.

 

José Paulo Paes, Socráticas