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José Paulo Paes

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Cigarra, Formiga & Cia

josé paulo paes

Cansadas dos seus papéis fabulares, a cigarra e a formiga
resolveram associar-se para reagir contra a estereotipia a que
haviam sido condenadas.

Deixando de parte atividades mais lucrativas, a formiga empresou
a cigarra. Gravou-lhe o canto em discos e saiu a vendê-los de
porta em porta. A aura de mecenas a redimiu para sempre do
antigo labéu de utilitarista sem entranhas.

Graças ao mecenato da formiga, a cigarra passou a ter comida e
moradia no inverno. Já ninguém a poderia acusar de imprevidência
boêmia.

O desfecho desta refábula não é róseo. A formiga foi expulsa do
formigueiro por lhe haver traído as tradições de pragmatismo à
outrance e a cigarra teve de suportar os olhares de desprezo com
que o comum das cigarras costuma fulminar a comercialização da
arte.

 

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Opção

josé paulo paes

Seja para uma platéia de muitos
ou de um só espectador
aos atores incumbe representar
seus respectivos papéis
até o fim da peça.

Nisso diferem dos suicidas
que sem a menor cerimônia
voltam as costas ao respeitável público
e saem de cena
quando bem entendem.

 

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Salomé

josé paulo paes

Mas o que é que se agita
nas roscas do teu ventre
e faz dele um ninho
vivo de serpentes?

Mas o que é que desliza
por teus braços acima
e lhes põe uns coleios
de corda assassina?

Mas o que é que te morde
feroz os calcanhares
e se assanha mais
e mais ao girares?

À espada que
sobre os seios sustentas,
que João não quereria
curvar a cabeça

para a ver decepada
num prato, mas sempre
com os olhos cegos fitos
na dança do teu ventre?

 

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Perguntas

josé paulo paes

Por que três reis magos
guiados por uma estrela
vão até o lugar
onde está esse menino
que supõem divino?

E os pastores, por que
deixam nas cabanas
seus filhos pequeninos
para juntar-se aos magos
e cantar hosanas?

Será que esse menino
já não tem o que precisa?
Um berço de palha,
vaca, burro, mãe
e seu próprio destino?

— Uma cruz de madeira,
uma esponja de fel,
três cravos, cinco chagas
e mais uma mortalha
como qualquer mortal?

Mas serão cruz, fel e cravos
a palavra final?
Então por que estrela,
magos e pastores
em sempre outro Natal?

 

José Paulo Paes, Socráticas 

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Promissória ao bom Deus

josé paulo paes

NÃO TE AMAREI sobre todas as coisas, mas em cada uma delas,
por mínima que seja. É o que compete aos poetas fazer.

NÃO TOMAREI teu nome em vão, mesmo porque nome é coisa séria. Inclusive os feios, que, ditos por dá cá aquela palha, perdem muito da sua eficácia.

GUARDAREI os domingos e quantos dias de festa houver, que ninguém é de ferro, como descobriste no sexto dia da Criação.

SEMPRE HONREI pai pela paciência e mãe pela ternura com que
me aguentaram, a não ser por dois ou três cascudos tão a contragosto
que mais pareciam carícias disfarçadas.

SÓ MATAREI no sentido figurado da palavra — matar o bicho, matar o
tempo — por mais forte que seja a tentação do sentido próprio durante
o horário eleitoral gratuito.

NÃO PECAREI contra a casta idade assim que lá chegar. Por enquanto
estou só a caminho, Senhor!

NÃO FURTAREI, salvo se se tratar de uma boa ideia ou de um adjetivo
feliz que possa trazer um pouco de brilho à minha fosca literatura.

NÃO LEVANTAREI falso testemunho de ninguém, muito menos de ti, que hás por certo de preferir um agnóstico fora do teu templo a um vendilhão dentro dele.

NÃO COBIÇAREI coisas alheias. Deixo-as todas para os filisteus do meu
país, fascinados pelas quinquilharias do que, enchendo a boca, eles chamam de primeiro mundo.

NÃO DESEJAREI a mulher do próximo nem a do remoto. Como sabes, jamais tive paciência de esperar na fila.

EM SUMA, Senhor, vou fazer o humanamente possível para seguir teus
mandamentos. Mas desculpa, agora e na hora de nossa morte, qualquer
eventual escorregão nas cascas que o Diabo espalhou a mancheias pelo
nosso caminho depois de ter comido todas as frutas do teu, para sempre
perdido, Paraíso.

 

José Paulo Paes, Socráticas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Gato da China

josé paulo paes

Era uma vez
um gato chinês

que morava em Xangai
sem mãe e sem pai,

que sorria amarelo
para o Rio Amarelo,

com seu olhos puxados,
um pra cada lado.

Era um gato mais preto
que tinha nanquim,

de bigodes compridos
feito mandarim,

que quando espirrava
só fazia “chin!”

Era um gato esquisito:
comia com palitos

e quando tinha fome
miava “ming-au!”

mas lambia o mingau
com sua língua de pau.

Não era um bicho mau
esse gato chinês,

era até legal.
Quer que eu conte outra vez?

 

José Paulo Paes, Poemas

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Cadê

josé paulo paes

Nossa! que escuro!
Cadê a luz?
Dedo apagou.
Cadê o dedo?
Entrou no nariz.
Cadê o nariz?
Dando um espirro.
Cadê o o espirro?
Ficou no lenço.
Cadê o lenço?
Dentro do bolso.
Cadê o bolso?
Foi com a calça.
Cadê a calça?
No guarda-roupa.
Cadê o guarda-roupa?
Fechado a chave.
Cadê a chave?
Homem levou.
Cadê o homem?
Está dormindo
de luz apagada.
Nossa! que escuro!

José Paulo Paes, Lé com Cré

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Pescaria

josé paulo paes

Um homem
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a idéia
de usar as minhocas numa pescaria
para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.
Onde será que foi parar?
não sei
nem quero me preocupar com isso.
Vou mais é pescar.

José Paulo Paes, Poema para Brincar

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Paraíso

josé paulo paes

Se esta rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar,
não para automóveis matar gente,
mas para criança brincar.

Se esta mata fosse minha,
eu não deixava derrubar.
Se cortarem todas as árvores,
onde é que os pássaros vão morar?

Se este rio fosse meu,
eu não deixava poluir.
Joguem esgotos noutra parte,
que os peixes moram aqui.

Se este mundo fosse meu,
Eu fazia tantas mudanças
Que ele seria um paraíso
De bichos, plantas e crianças.

José Paulo Paes, Poemas para Brincar

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Cemitério

josé paulo paes

1

Aqui jaz um leão
chamado Augusto.
Deu um urro tão forte,
mas um urro tão forte,
que morreu de susto.

2

Aqui jaz uma pulga
chamada Cida.
Desgostosa da vida,
tomou inseticida:
era uma pulga suicida.

3

Aqui jaz um morcego
que morreu de amor
por outro morcego.
Desse amor arrenego:
amor cego, o de morcego!

4

Neste túmulo vazio
jaz um bicho sem nome.
Bicho mais impróprio!
Tinha tanta fome
que comeu-se a si próprio.

José Paulo Paes, Poemas para Brincar

José Paulo Paes

José Paulo Paes – Convite

josé paulo paes

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio,pião.

Só que
bola, papagaio,pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

como a água do rio
que é água sempre nova.

como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

José Paulo Paes, Poema para Brincar