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Lorena Martins

Lorena Martins

Lorena Martins – A Janela gradeada

suspensa na xícara
café amargo

esqueço de adoçar,
eu nem sempre
esqueço.

a mala ocupando o
corredor
arranca-me os sapatos

eu salto
eu caio
eu esparramo mapas

enquanto o telefone
toca
e eu não atendo.

do parapeito
desconheço vizinhos
aceno em vão

deixo queimar
o rosto
a metade

memorizo o caminho
de volta
com as bolas do colar
vermelho

embrulho tudo no
lençol
lenços, casacos

caixas-pretas

amarradas, assustam o porteiro
bom dia, dona flor

é feriado.

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – Desamor

é a dor de um morto
as fotos guardadas
na caixa de sapato

é da cor do grito
e me ventila
sempre que insone desabo
pela casa
vazia

é uma ressaca
que quando me acorda
chora
seu nó na garganta

é um ensaio
que tardando para ir embora
adormece seu sonho
insalubre

é um soneto arredio
um sol que se põe
sobre mim
é um soco,

aaaaaaaaaaaaaaaaaum escândalo

sempre que desperto

e me vejo

partir.

 

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – Como um mágico escondido

I

como um mágico escondido
atrás dos livros
meu amor me olha com gosto
de lágrima

do fim de tarde vazio
restam as pernas cruzadas
sobre o vaso e as flores
enroscadas
pétala a pétala na pele
do meu amor que me fita
triste
a mão macia apoiada
no ventre de um verso.

II

espero por teus olhos,
meu demorado amor,
detendo-se sobre o meu colo
com sua saliva
o cheiro áspero e eterno
da sua saliva.

 

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – Uma bossa

o meu amor me deixou
imune à gripe
aos flertes e às flores
que murcham nas escadarias

o meu amor me deixou boquiaberta
suada como se vestisse
mil invernos

o meu amor não me deixou
na foto do ano que esquecemos
o meu amor segurou-me o braço
e como um pássaro
veio comigo e com a mesma fuga
dos olhares

o meu amor anda num feitiço
que só de acordar
eu perco todos os ponteiros
nua e coberta de ontem
eu posso vê-lo partir

pelo ruído da noite.

 

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – Eu vivo

eu vivo
como quem prende o cabelo a grampos
e deixa o dia escorrer assim
solvente
na esquina.
eu desfaço
enquanto ele é cama
a cantar sonoro.

(eu não acredito)

da nudez vaga que paira, só resta isso
fumar às auréolas
imaginar que ele tira a roupa
e se encaixa ali
no espaço despassado.

a vislumbrar o tempo
a acelerar o desprezo
a acalmar a impaciência

eu,
que nem ao gesto amanheço,
tomo tudo com o mesmo gosto
do mergulho perverso

inverso

que de pouco
de tão pouco
me excita.

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – Veja só

veja só

é como se eu tirasse os sapatos
estendesse minha perna sobre a mesa
e
antes de rasgar o vestido
dedilhasse teu rosto.

desfiz o passo
dei meia volta
caí no teu colo
balancei humores
ritmei os colares
e me abandonei.

é como se eu sentisse
ao soar o corpo
tu me olhares a seguir:

eu não te encaro.

diante do espelho
carrego a água
mais palpável do que eu.

 

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – Nula parte

nula parte
é meu ar apoiando-se na janela:
os olhos calados de sol
e o rosto queimando
à boca entreaberta.

(uma folha demora a cair sobre mim)

entre os versos à porta
talhados à ponta de chave
desabo singela
e música.

é meu o olhar que se abre na fresta do banho
é tua a ausência que escorre
inunda os pés
deságua silêncios.

(queria mesmo a cama das tuas pernas)

não há mais chão para o cansaço
sou pluma e cinzas flutuando pela casa
a encarar a porta
a cegar à janela

a chorar nua.

na soleira do quarto
abandono a cabeça entre as mãos
até sentir o cheiro da minha pele

vazio.

 

Lorena Martins, Água para Viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – 13:12

ando louca de paixão
a arrastar meu olhar pelas pernas dos homens
para que então minhas volúpias se abram
debaixo das toalhas
úmidas
para que então as coxas enervem-se
a enredar as saias
e debaixo dos meus olhos
revele-se ele todo
envergonhado
e nu

(o pensamento, luxurioso, arranca as roupas)

ando às cachoeiras
sorrindo às escondidas
os lábios descasando-se a ruborecer a língua
a lamber como quem pinta vermelhos toscos
nas estranhezas do torso
a rasgar-se sob as pálpebras noturnas
deixando a uva vulva volver-se

veludo molhado.

Lorena Martins, Água para viagem

Lorena Martins

Lorena Martins – 24:04

ando assim
a buscar os pássaros em meio a tanto barulho
a chorar pinturas de Boldini
a lembrar-me de ti.

ando assim
ao vento
deixando seu abano soar suave
a rir de minhas saias
a fazer-me dançar os pés

ando assim
sincera e sonora
sentindo o ventre pulsar
embalado a poesias
agarrado pelos dedos
silenciado às pinceladas

escrevo-te assim
subitamente
deixando com que as palavras me tomem
descompassadas
a transbordar

escrevo-te assim
como quem corta o espelho
com a unha do verso.

Lorena Martins, Água para Viagem