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Manoel de Barros

Manoel de Barros

Manoel de Barros – Brincadeiras

manoel de barros

No quintal a gente gostava de brincar com palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:
O céu tem três letras
O sol tem três letras
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
Para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três
Logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n’água. Entendemos tudo.
Depois Cipriano falou:
Mais alto do que eu só Deus e os passarinhos.
A dúvida era saber se Deus também avoava
Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.
Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.
Outro dia a gente destampamos a cabeça de Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
Nenhuma ideia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.
Isso era.

 

Manoel de Barros, Memórias inventadas para crianças

Manoel de Barros

Manoel de Barros – O menino que ganhou um rio

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Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!

 

Manoel de Barros, Memórias inventadas para crianças

Manoel de Barros

Manoel de Barros – Vento

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Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha para trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda.
Ele não dói nada.
Vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz ui.
A gente estudou no Colégio que vento
é o ar em movimento.
E que o ar em movimento é vento.
Eu quis uma vez implantar uma costela
no vento.
A costela não parava nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo
do vento.
Depois me ensinaram que vento não tem
organismo.
Fiquei estudado.

 

Manoel de Barros, Poesia completa

Manoel de Barros

Manoel de Barros – Eu não vou perturbar a paz

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De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.

 

Manoel de Barros, Poesia Completa

Manoel de Barros

Manoel de Barros – Na Enseada de Botafogo

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Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja…
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.

Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!

Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?

Manoel de Barros, Meu Quintal e Maior que o Mundo

Manoel de Barros

Manoel de Barros – Antoninha-me-leva

manoel de barros

Outro caso é o de Antoninha-me-leva:
Mora num rancho no meio do mato e à noite recebe os
vaqueiros tem vez que de três e até quatro comitivas
Ela sozinha!

Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu.
Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de flores.
Nessa noite Antoninha folgou.

Há muitas maneiras de viver mas essa de Antoninha era
de morte!

Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os vestidos.
A fome não é invenção de comunistas, titio.
Experimente receber três e até quatro comitivas de
boiadeiros por dia!

 

Manoel de Barros, Meu quintal e maior que o mundo

Manoel de Barros

Manoel de Barros – Sabastião

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Todos eram iguais perante a lua
Menos só Sabastião, mas era diz-que louco daí pra fora
— Jacaré no seco anda? — preguntava.
Meu amigo Sabastião
Um pouco louco
Corria divinamente de jacaré. Tinha um
Que era da sela dele somentes
E estranhava as pessoas.
Naquele jacaré ele apostava corrida com qualquer peixe
Que esse Sabastião era ordinário!
Desencostado da terra
Sabastião
Meu amigo
Um pouco louco.

Manoel de Barros, Meu quintal é maior do que o mundo