Navegando pela Categoria

Mário de Andrade

Mário de Andrade

Mário de Andrade – Tristura

mário de andrade

Profundo. Imundo meu coração…
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios…
Minha alma corcunda como a avenida São João…

E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu nunca em guizos nos meus interiores arlequinais!…

Pauliceia, minha noiva… Há matrimônios assim…
Ninguém os assistirá nos jamais!

As permanências de ser um na febre!

Nunca nos encontramos…
Mas há rendez-vous na meia-noite do Armenonville…

E tivemos uma filha, uma só…
Batismos do sr. cura Bruma;
água-benta das garoas monótonas…
Registrei-a no cartório da Consolação…
Chamei-a Solitude das Plebes…

Pobres cabelos cortados da nossa monja!

 

Mário de Andrade, Poesias Completas vol. 1

Mário de Andrade

Mário de Andrade – O retrato

mário de andrade

O meu peito é uma sala de castelo,
Sala deserta, sala muda, fria,
Sem um riso de flor, sem a alegria
Duma açafata ou de algum pajem belo.

Solenidade e poeira. Fora o dia,
Festa do azul, do róseo, do amarelo,
Mas dentro apenas o ligeiro anelo
Da luz mortiça duma fresta esguia.

Paredes guarnecidas de veludo,
Alfaias, móveis, almadraques, tudo
Cobre a penumbra com seu olho absorto.

E há o retrato do meu antepassado,
O meu eu de criança abandonado,
O meu primeiro coração, já morto.

 

Mário de Andrade, Poesias Completas vol. 2

Mário de Andrade

Mário de Andrade – Mãe

mário de andrade

Existirem mães,
Isso é um caso sério.
Afirmam que a mãe
Atrapalha tudo,
É fato, ela prende
Os erros da gente,
E era bem melhor
Não existir mãe.

Mas em todo caso
Quando a vida está
Mais dura, mais vida,
Ninguém como a mãe
Pra aguentar a gente
Escondendo a cara
Entre os joelhos dela.
– O que você tem?…
Ela bem que sabe
Porém a pergunta
É pra disfarçar.
Você mente muito,
Ela faz que aceita,
E a desgraça vira
Mistério pra dois.
Não vê que uma amante
Nem outra mulher
Entende a verdade
Que a gente confessa
Por trás das mentiras!
Só mesmo uma mãe…
Só mesmo essa dona
Que a-pesar-de ter
A cara raivosa
Do filho entre os seios,
Marcando-lhe a carne,
Sentindo-lhe os cheiros,
Permanece virgem,
E o filho também…
Ôh virgens, perdei-vos,
Pra terdes direito
A essa virgindade
Que só as mães têm!

 

Mário de Andrade, Poemas e um Prefácio Interessantíssimo

Mário de Andrade

Mário de Andrade – Soneto

mário de andrade

Tanta lágrima hei já, senhora minha,
Derramado dos olhos sofredores,
Que se foram com elas meus ardores
E a ânsia de amar que de teus dons me vinha.

Todo o pranto chorei. Todo o que eu tinha,
Caiu-me ao peito cheio de esplendores,
E em vez de aí formar terras melhores,
Tornou minha alma sáfara e maninha.

E foi tal o chorar por mim vertido,
E tais as dores, tantas as tristezas
Que me arrancou do peito vossa graça,
Que de muito perder, tudo hei perdido!
Não vejo mais surpresas nas surpresas
E nem chorar sei mais, por mor desgraça!

 

Mário de Andrade, Poesias Completas

Mário de Andrade

Mário de Andrade – Eu sou Trezentos…

mário de andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo. . .
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Mário de Andrade, Poesias Completas