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Mario Quintana

Mario Quintana

Mario Quintana – O autorretrato

mario quintana

No retrato que me faço
— traço a traço —
Às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore…

Às vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança…
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão…

E, desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!

 

Mario Quintana, Antologia Poética

Mario Quintana

Mario Quintana – Cinco fábulas

mario quintana

I

A mosca, a debater-se: “Não! Deus não existe!
Somente o Acaso rege a terrena existência!”
A aranha: “Glória a Ti, Divina Providência,
Que à minha humilde teia essa mosca atraíste!”

II

Com a pele do leão vestiu-se o burro um dia.
Porém no seu encalço, a cada instante e hora,
“Olha o burro! Fiau! Fiau!” gritava a bicharia…
Tinha o parvo esquecido as orelhas de fora!

III

Mono Velho, a gemer de gota, avista um leão.
Qual gota! Qual o quê! Logo trepa a um coqueiro.
Nada, para esquecer uma aflição,
Como um grande tormento verdadeiro…

IV

Gato do mato e leão, conforme o combinado,
Juntos caçavam corças pelo mato.
As corças escaparam… Resultado:
Não escapou o gato.

V

Diz o elefante às rãs que em torno dele saltam:
“Mais compostura! ó Céus! Que piruetas incríveis!”
Pois são sempre, nos outros, desprezíveis
As qualidades que nos faltam…

 

Mario Quintana, Antologia Poética

Mario Quintana

Mario Quintana – O Espelho

mario quintana

E como eu passasse por diante do espelho
Não vi meu quarto com as suas estantes
Nem este meu rosto
Onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
Janelas onde olham avós hirsutos
E as vovozinhas de saia-balão
Como paraquedistas às avessas que subissem do fundo
do tempo.

O relógio marcava a hora
Mas não dizia o dia. O Tempo,
Desconcertado,
Estava parado.

Sim, estava parado
Em cima do telhado…
Como um catavento que perdeu as asas!

 

Mario Quintana, Antologia Poética

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção da noite alta

mario quintana

Menina está dormindo.
Coração bolindo.
Mãe, por que não fechaste a janela?
É tarde, agora:
Pé ante pé
Vem vindo
O Cavaleiro do Luar.
Na sua fronte de prata
A lua se retrata.
No seu peito
Bate um coração perfeito.
No seu coração
Dorme um leão,
Dorme um leão com uma rosa na boca.
E o príncipe ergue o punhal no ar:
… um grito
aflito…
Louca!

Mario Quintana, Antologia Poética 

Mario Quintana

Mario Quintana – Viver

mario quintana

Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros saíram por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar…Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar…
e voar…
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!

Mario Quintana, Esconderijos do Tempo

Mario Quintana

Mario Quintana – Dedicatória

mario quintana

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?
Quem foi que disse que eu escrevo para o basfond?
Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia.
Eu escrevo para o João Cara de Pão.
Para você, que está com este jornal na mão…
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia,
O resto não passa de crônica policialsocialpolítica.
E os jornais sempre proclamam que “a situação é crítica”!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são cotidianas como o
pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
na concha da mão.

Mario Quintana, Poesia Completa

Mario Quintana

Mario Quintana – XVII

mario quintana

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

Mario Quintana, A Rua dos Cataventos

Mario Quintana

Mario Quintana – Ano-novo

mario quintana

Agora nesta margem do Ano-Novo
Me sacudo todo como um cão molhado.
No meio do parque há um letreiro: ANO-BOM. O povo
Acredita,
O povo tem um sorriso que vai de orelha a orelha:
Meu Deus, até parece degolado!
Toda a rosa-dos-ventos se desfolha
E o ar está cheio de nomes amados
– uns tristes de tão longe…
Porém o rastro que eles deixam é sempre azul.
Estou só, ó Vida,
Só e livre.
Das palmas das minhas mãos brota o vôo de um
pássaro!
Enquanto
lá do fundo da infância que eu não tive –
Um menino apresta o arco…

Mario Quintana, Poesia Completa

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção do amor imprevisto

mario quintana

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos…

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria
atônita…

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

Mario Quintana, Poesia Completa

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção da Primavera

mario quintana

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo…

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

Mario Quintana, Canções 

Mario Quintana

Mario Quintana – Poema

mario quintana

Oh! aquele menininho que dizia
“Fessora, eu posso ir lá fora?”
Mas apenas ficava um momento
Bebendo o vento azul…
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
Somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo…
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.

Mario Quintana, Nova Antologia Poética 

Mario Quintana

Mario Quintana – O adolescente

mario quintana

A vida é tão bela que chega a dar medo,

Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas

esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova…
A vida é nova e anda nua
— vestida apenas com o teu desejo!

Mario Quintana, Apontamentos de história sobrenatural

Mario Quintana

Mário Quintana – Amadurecimento

mario quintana

Aprenda a gostar de você, a cuidar de você e principalmente a gostar de quem também gosta de você…
A idade vai chegando e com o passar do tempo, nossas prioridades na vida vão mudando..
A vida profissional, a monografia de final de curso, as contas a pagar. Mas uma coisa parece estar sempre presente…
A busca pela felicidade com o amor da sua vida.
Desde pequenos ficamos nos perguntando “quando será que vai chegar?”
E a cada nova paquera, vez ou outra nos pegamos na dúvida “será que é ele?
Como diz o meu pai: “nessa idade tudo é definitivo”, pelo menos a gente achava que era.
Cada namorado era o novo homem da sua vida. Faziam planos, escolhiam o nome dos filhos, o lugar da lua-de-mel e, de repente… PLAFT!
Como num passe de mágica ele desaparecia, fazendo criar mais expectativas a respeito “do próximo”.
Você percebe que cair na guerra quando se termina um namoro é muito natural, mas que já não dura mais de três meses.
Agora, você procura melhor e começa a ser mais seletiva.
Procura um cara formado, trabalhador, bem resolvido, inteligente, com aquele papo que a deixa sentada no bar o resto da noite.
Você procura por alguém que cuide de você quando está doente, que não reclame em trocar aquele churrasco dos amigos pelo aniversário da sua avó, que jogue “imagem e ação” e se divirta como uma criança, que sorria de felicidade quando te olha, mesmo quando está de short, camiseta e chinelo.
A liberdade, ficar sem compromisso, sair sem dar satisfação já não tem o mesmo valor que tinha antes.
A gente inventa um monte de desculpas esfarrapadas mas continuamos com a procura incessante por uma pessoa legal, que nos complete e vice-versa. Enquanto tivermos maquiagem e perfume, vamos à luta…
E haja dinheiro para manter a presença em todos os eventos da cidade: churrasco, festinhas, boates na quinta-feira. Mas o melhor dessa parte é se divertir com os amigos, rir até doer a barriga, fazer aqueles passinhos bregas de antigamente e curtir o som…
Olhar para o teto, cantar bem alto aquela música que você adora. Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com uma outra pessoa, você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela.
Percebe também que aquele cara que você ama (ou acha que ama), e que não quer nada com você, definitivamente não é o homem da sua vida.
Você aprende a gostar de você, a cuidar de você e principalmente a gostar de quem também gosta de você.
O segredo é não correr atrás das borboletas…
É cuidar do jardim para que elas venham até você.
No final das contas, você vai achar não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você!

Mario Quintana

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Mário Quintana – Vidas

mario quintana

Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem…
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida…

Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!

Mário Quintana, Poesias Completa

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção do dia sempre

mario quintana

Tão bom viver dia a dia…
A vida, assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu…

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência.., esperança…

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

Mário Quintana, Poesias Completa