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Mia Couto

Mia Couto

Mia Couto – Estrada de terra, na minha terra

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Na minha terra
há uma estrada tão larga
que vai de uma berma à outra.

Feita tão de terra
que parece que não foi construída.
Simplesmente, descoberta.

Estrada tão comprida
que um homem
pode caminhar sozinho nela.

É uma estrada
por onde não se vai nem se volta.

Uma estrada
feita apenas para desaparecermos.

 

Mia Couto, Poemas escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – Desilusão

mia couto

Desiludido com o mundo,
Afrânio concluiu: “uns são filhos da puta,
outros só não o são
porque a mãe é estéril”

Decidido ao suicídio,
no alto da falésia hesitou:
“no mar não me lanço
que é demasiada sepultura.
Como receberei flores
entre tanto peixe faminto?”

Ante a fogueira, Afrânio desfez as contas:
“Na labareda, não.
Como me distinguiria,
depois, entre a cinza da lenha ardida?”

Quando na alta copa se pensou pendurar,
uma vez mais ele se avaliou.
E recordou o vizinho Salomão
que, de enforcado, se converteu em fruto,
seiva correndo na veia,
polpa viva a seduzir a passarada.

Afrânio regressou a casa,
resfregou as solas sobre os tapetes,
a esposa festejou o novo alento.

Engano seu, mulher, respondeu Afrânio.
Eu apenas escolhi outro suicídio.
A minha morte é este viver.

 

Mia Couto, Poemas escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – Estátua

mia couto

Da abandonada estátua
partilho o mineral destino:
encherei de vazio a pedra,
e manterei os olhos polidos
pelos dejetos dos pássaros.

Da poesia
fiel discípulo serei:
abrirei a boca
apenas para morrer.

Mas se houver que proclamar
a justa lembrança, direi:

– a primeira pedra
não foi para castigar mulher.

Foi para esculpir
uma deusa
em cada futura Madalena.

 

Mia Couto, Vagas e lumes

Mia Couto

Mia Couto – Prematuros olhos

mia couto

Muito antes de mim, 
os meus olhos 
andaram a despir o mundo. 

O que era roupa 
tombou num escuro abismo, 
desolada ave sob a chuva. 

E não era roupa, 
era alma de gente, 
sonhos à procura do tempo. 

Debruçada na margem, 
a lavadeira sabe: 
não é da roupa que cuida. 
É o próprio rio que ela lava. 

E no seu ventre, 
onde a luz se ajoelha, 
certa vez se desenroscou 
a trança cega do Tempo. 

Por isso, mãe, 
os meus olhos são teus. 

E eles não servem para ver. 

Apenas para recordar. 

O que antes de ser luz 
foi palavra e corpo. 

 

Mia Couto, Vagas e lumes

Mia Couto

Mia Couto – Árvore

mia couto

Onde os frutos maduram:
sal e sol em minhas veias,
luz e mel em boca alheia.

Onde plantei
a alta acácia das febres
eu mesmo me deitei,
para ser a raiz da semente,
e de madeira e seiva
se fez o meu corpo.

Agora,
chove dentro de mim,
em minhas folhas se demoram gotas,
suspensas entre um e outro Sol.

Em mim pousam
cantos e sombras
e eu não sei
se são aves ou palavras.

 

Mia Couto, Vagas e Lumes

Mia Couto

Mia Couto – Doença

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O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali o trouxera em tempos.

E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
“Arritmia paroxística supraventricular”

Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.

As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação.

Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.

Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.

 

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – O Pecador do rio

mia couto

Na igreja,
Rosarinho se confessou:
engravidei do rio, senhor padre.

Com gesto de água
arredondou o ventre.

O padre
se enrugou:
ela que não usasse desculpa
para os seus mortais pecados.

A ofensa tremia
na voz dela quando retorquiu:
— Desculpe, padre,
mas Nossa Senhora
não emprenhou de um feixe de luz?

Para mais, acrescentou Rosarinho,
o senhor padre
nem nunca, nem jamais viu esse rio.
E rematou
com lânguida saudade: aquele ondear,
as tonturas que ele traz…

Pegou o padre pela mão
e o convidou a descer o vale.

Agora,
todas as noites
o padre se banha
— Desculpe, padre,
mas Nossa Senhora
não emprenhou de um feixe de luz?

Para mais, acrescentou Rosarinho,
o senhor padre
nem nunca, nem jamais viu esse rio.
E rematou
com lânguida saudade: aquele ondear,
as tonturas que ele traz…

Pegou o padre pela mão
e o convidou a descer o vale.

Agora,
todas as noites
o padre se banha
nas águas do rio pecador.

 

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – A adiada enchente

mia couto

Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.

Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.

Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.

 

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – A lentidão da sede

mia couto

A chegada dos bois
ao bebedouro
me ensina a espera,
o tempo da água
no corpo da terra.

O boi
não precisa que o sonhem.

O boi bebe
e os olhos se enchem de céu.

A tarde, terrestre,
se ajeita à esteira,
mulher se oferecendo
ao trançar dos cabelos.

Um dia, me cumprirei,
findo e final,
como os bois se acercam do bebedouro.

Um dia,
serei bebido pelo céu.

 

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – O amor, meu amor

mia couto

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – Tardio

mia couto

Quando quis ser fruto
fui fome,
não mais do que areia
de um chão sem cio.

Quando sonhei ser pano
fui agulha.
E morri no sono do gesto
de enrolar o fio.

Quando aprendi a ser poente
já não havia céu.

Quando quis anoitecer
tudo era luz.

E assim me condeno
em livre vício:
no mais derradeiro
eu só vislumbro um início.

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – Rosa

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Não ascendo a rosa.
Fico por espinho, crosta, remorso.

Lição do gesto
de quem retira a mão,
gotejando sangue,
em castigo
de querer possuir
a beleza da flor.

Me sufoca o ser,
me assusta o querer ser.

O que mais quero ter
é a impossibilidade do ter.

Mia Couto, Poemas Escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – O espelho

mia couto

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

Mia Couto, Idades, Cidades, Divindades

Mia Couto

Mia Couto – A luz da dor

mia couto

O meu modo de saber é adoecendo.

A uns, a ideia surge em luz.
A mim, se declara
uma pontada no peito.

O advento da dor,
o deflagrar da súbita febre
e eu sei que o meu corpo sabe.

Um dia destes
me desconhecerei vivo
desfalecido de aguda sapiência.

Até lá
repartirei com um anjo
o doce milagre da refeição.

Mia Couto, Poemas Escolhidos