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Murilo Mendes

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Cantiga de Malazarte

murilo mendes

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Murilo Mendes, Poemas – 1925-1929

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Vocação do poeta

murilo mendes

Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

Murilo Mendes, Melhores poemas Murilo Mendes

Murilo Mendes

Murilo Mendes – A sesta

murilo mendes

O sol bate em chapa nas casas antigas.
O mar embalança,
rede mole sem corpo de mulata,
verde azul lilás verde outra vez.
As praias espreguiçam-se malandras
é a hora das linhas repousantes

A buzina distante dum automóvel
chega até aqui com um som de lundu.
Um mulatinho magro com o desenho certo
chupa um pirulito devagarinho.
Dentro das casas pensativas
as meninas caem na madorna.

A música das serrarias aumenta a sonolência…
Os comerciantes torcem pra nenhum freguês entrar.

Murilo Mendes, Melhores poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – O menino sem passado

murilo mendes

Monstros complicados
não povoaram meus sonhos de criança
porque o saci-pererê não fazia mal a ninguém
limitando-se moleque a dançar maxixes desenfreados
no mundo das garotas de madeira
que meu tio habilidoso fazia para mim.

A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.

De noite eu ia no fundo do quintal
pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos
que ia me levar dentro dum surrão,
mas não acreditava nada.

Fiquei sem tradição sem costumes nem lenda
estou diante do mundo
deitado na rede mole
que todos os países embalançam.

Murilo Mendes, Melhores poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Carta de Pero Vaz

murilo mendes

A terra é mui graciosa,
Tão fértil eu nunca vi.
A gente vai passear,
No chão espeta um canito,
No dia seguinte nasce
Bengala de castão de oiro.
Tem goiabas, melancias.
Banana que nem chuchu.
Quanto aos bichos, tem-nos muitos.
De plumagens mui vistosas.
Tem macaco até demais.
Diamantes tem à vontade,
Esmeralda é para os trouxas.
Reforçai, Senhor, a arca.
Cruzados não faltarão,
Vossa perna encanareis,
Salvo o devido respeito.
Ficarei muito saudoso
Se for embora d’aqui.

 

Murilo Mendes, Melhores poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – 1500

murilo mendes

A imaginação do Senhor
Flutua sobre a baía.
As pitangas e os cajus
Descansam o dia inteiro.
O céu, de manhã à tarde,
Faz pinturas de baú.
O Pão de Açúcar sonhou
Que um carro saiu da Urca
Transportando com amor
Meninas muito dengosas,
Umas, nuinhas da silva,
Outras, vestidas de tanga,
E mais outras, de maillot.
Chega um índio na piroga,
Tira uma gaita do cinto,
Que uma índia sai da onda,
Suspende o corpo no mar.
Nasce ali mesmo um garoto
Do corpo moreno dela,
No dia seguinte mesmo
O indiozinho já está
De arco e flecha na mão,
Olhando pro fim do mar.
De repente uma fragata

 

Murilo Mendes, Melhores poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – O poeta na igreja

murilo mendes

Entre a tua eternidade e o meu espírito
se balança o mundo das formas.
Não consigo ultrapassar a linha dos vitrais
pra repousar nos teus caminhos perfeitos.
Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres,
pronto.
Estou aqui, nu, paralelo à tua vontade,
sitiado pelas imagens exteriores.
Todo o meu ser procura romper o seu próprio molde
em vão! noite do espírito
onde os círculos da minha vontade se esgotam.
Talhado pra eternidade das ideias
ai quem virá povoar o vazio da minha alma?

Vestidos suarentos, cabeças virando de repente,
pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos,
seios decotados não me deixam ver a cruz.
Me desliguem do mundo das formas!

 

Murilo Mendes, Melhores poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Os dois lados

murilo mendes

Deste lado tem meu corpo
tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e movimentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória
tem o caminho pro trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida
tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão,
tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.

 

Murilo Mendes, Melhores poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Poema essencialista

murilo mendes

A madrugada de amor do primeiro homem
O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
O desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O aperto de mão aos meus ascendentes
O fim da ideia de propriedade, carne e tempo
E a permanência no absoluto e no imutável.

 

Murilo Mendes, Melhores Poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Poema pessoal

murilo mendes

Levanto-me da carruagem de paixões e plumas
Aparentemente guiada pelas irmãs Brontë.

Deu uma tristeza agora nos telhados…

As cigarras sublinham a tarde emparedada,
O trovão fechou o piano.
Surge antecipadamente o arco-íris,
Aliança temporária de Deus com o homem,
Sem a solidez da eucaristia:
Surge sobre encarcerados, órfãos, marginais,
Sobre os tristes e os sem-solução.

Dos quatro cantos de mim mesmo
Irrompe um Dedo terribilíssimo que me acusa
Porque sem os olhar deixo de lado
Os restos agonizantes do mundo.

Transformou-se agora o céu.
Céu patinado, que escureza.
Céu sempre futuro e amargo,
Como são fundamentais
Estes sofrimentos de segundo plano!

Mais o que mesmo lembrar?
Ah sim – esta arrastada caranguejola da vida…

 

Murilo Mendes, Melhores Poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Canção do exílio

murilo mendes

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

Murilo Mendes, Melhores Poemas 

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Ideia fortíssima

murilo mendes

Uma ideia fortíssima entre todas menos uma
Habita meu cérebro noite e dia,
A ideia de uma mulher, mais densa que uma forma.
Ideia que me acompanha
De uma a outra lua,
De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia,
Que me arranca do tempo e sobrevoa a história,
Que me separa de mim mesmo,
Que me corta em dois como o gládio divino.
Uma ideia que anula as paisagem exteriores,
Que me provoca terror e febre,
Que se antepõe à pirâmide de órfãos e miseráveis,
Uma ideia que verruma todos os poros do meu corpo
E só não se torna o grande cáustico
Porque é um alívio diante da ideia muito mais forte e violenta de Deus.

Murilo Mendes, Melhores Poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – O Espelho

murilo mendes

O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.

Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.

Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.

A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.

Murilo Mendes, Melhores Poemas

Murilo Mendes

Murilo Mendes – Tobias e o Anjo

murilo mendes

1

Eles já caminharam muito
Ao som das trombetas pascais,
Mergulhando nas árvores
Que de perto são verdes
Mas têm uma profundidade azul.

Já o grande Peixe investiu contra o moço dançarino.
Já deixaram atrás os muros de Ecbatana
E o perfil de Sara:
O vento varre as omoplatas da pedra.

Da castidade dos sinos
A noite agora surgiu.
O moço caminha só
Nas avenidas desertas.

2

O demônio moderno, áspero anjo,
Que pretendes enfim que eu te anuncie?
Ao fim dos sinos já encontramos a noite clássica,
E o profundo buquê de nuvens nos acena.

Nunca estaremos sós: pássaros e máquinas,
Vegetais marchando, espíritos desencadeados
Serão para sempre nossos cúmplices.

Do pálido asfalto
Se levanta a morte.
Jamais te encontrarei,
Adeus, invisível mundo.

Murilo Mendes, Melhores Poemas