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Pablo Neruda

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Grita

pablo neruda

AMOR, quando chegares na fonte distante,
cuida para não me morder com voz de sonho:
para que a minha dor não morra nas tuas asas,
que na garganta de ouro voz não se afogue.

Amor – quando chegares
na fonte mais distante,
sê turbilhão que assola,
sê rompante que crava.

Amor, desfaz o ritmo
da minha água tranquila:
saibas tu ser a dor que retine e que sofre,
saibas tu ser a angústia que retorce e grita.

Não seja eu esquecido
não me dês a ilusão
Porque todas as folhas que caíram na terra
foram tingindo de ouro meu coração.

Amor – quando chegares
na fonte mais distante,
desvia minhas vertentes,
crispa as minhas entranhas.
E assim uma tarde – Amor que tens as mãos cruéis -,
ajoelharei ante de ti e te darei graças.

Pablo Neruda, Crepusculário

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Amor

pablo neruda

MULHER, teria sido teu filho por beber
o leite dos teus seios como um manancial,
por te olhar e te sentir ao meu lado e ter
tido em teu riso de ouro uma voz essencial.

Por te sentir em minhas veias um Deus no rio
e te adorar nos tristes ossos de pó e cal,
porque teu ser passou sem pena e sem ter vício
saindo na estrofe pura – limpo desse mal -.

Como eu saberia te amar, mulher, saberia
amar, e amar, ninguém amou assim jamais!
Morrer e no entanto
amar-te mais.
E no entanto
amar-te mais
e mais

Pablo Neruda, Crepusculário

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Tenho fome da tua boca

pablo neruda

Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo, 
e ando pelas ruas sem comer, calado, 
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta, 
busco no dia o som líquido dos teus pés. 

Estou faminto do teu riso saltitante, 
das tuas mãos cor de furioso celeiro, 
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas, 
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa. 

Quero comer o raio queimado na tua formosura, 
o nariz soberano do rosto altivo, 
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas 

e faminto venho e vou farejando o crepúsculo 
à tua procura, procurando o teu coração ardente 
como um puma na solidão de Quitratue. 

 

Pablo Neruda, Cem sonetos de amor

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Corpo de mulher…

pablo neruda

Corpo de mulher, brancas colinas, brancas coxas,
pareces-te ao mundo em tua atitude de entrega.
O meu corpo de camponês selvagem te escava
e faz com que do fundo salte o filho da terra.

Fui só como um túnel. De mim fugiram os pássaros,
e em mim penetrava a noite sua invasão feroz.
Para sobreviver te forjei como uma arma,
uma flecha em meu arco, uma pedra em minha fisga.

Mas eis que cai a hora da vingança, e eu te amo.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávida e firme.
Ah os vasos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher mia, persistirei em tua graça.
Mia sede, mia ânsia sem fim, meu caminho indeciso!
Escuros leitos por onde a sede eterna segue,
e onde a fadiga segue, e a dor é infinita.

 

Pablo Neruda, Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Tu és em mim profunda primavera

pablo neruda

O sabor da tua boca e a cor da tua pele, 
pele, boca, fruta minha destes dias velozes, 
diz-me, sempre estiveram contigo 
por anos e viagens e por luas e sóis 
e terra e pranto e chuva e alegria, 
ou só agora, só agora 
brotam das tuas raízes 
como a água que à terra seca traz 
germinações de mim desconhecidas 
ou aos lábios do cântaro esquecido 
na água chega o sabor da terra? 

Não sei, não mo digas, tu não sabes. 
Ninguém sabe estas coisas. 
Mas, aproximando os meus sentidos todos 
da luz da tua pele, desapareces, 
fundes-te como o ácido 
aroma dum fruto 
e o calor dum caminho, 
o cheiro do milho debulhado, 
a madressilva da tarde pura, 
os nomes da terra poeirenta, 
o infinito perfume da pátria: 
magnólia e matagal, sangue e farinha, 
galope de cavalos, 
a lua poeirenta das aldeias, 
o pão recém-nascido: 
ai, tudo o que há na tua pele volta à minha boca, 
volta ao meu coração, volta ao meu corpo, 
e volto a ser contigo a terra que tu és: 
tu és em mim profunda primavera: 
volto a saber em ti como germino. 

 

Pablo Neruda, Os versos do capitão

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Ao pé de sua criança

pablo neruda

O pé da criança ainda não sabe que é pé,
e quer ser borboleta ou maçã.

Mas depois os vidros e as pedras,
as ruas, as escadas,
e os caminhos de terra dura
vão ensinando ao pé que não pode voar,
que não pode ser fruta redonda num ramo.

Então o pé da criança
foi derrotado, caiu
na batalha,
foi prisioneiro,
condenado a viver num sapato.

Pouco a pouco sem luz
foi conhecendo o mundo à sua maneira,
sem conhecer o outro pé, encerrado,
explorando a vida como um cego.

 

Pablo Neruda, Estravagario

Pablo Neruda

Pablo Neruda – O pai

pablo neruda

Terra de semente inculta e bravia, 
terra onde não há esteiros ou caminhos, 
sob o sol minha vida se alonga e estremece. 

Pai, nada podem teus olhos doces, 
como nada puderam as estrelas 
que me abrasam os olhos e as faces. 

Escureceu-me a vista o mal de amor 
e na doce fonte do meu sonho 
outra fonte tremida se reflecte. 

Depois… Pergunta a Deus porque me deram 
o que me deram e porque depois 
conheci a solidão do céu e da terra. 

Olha, minha juventude foi um puro 
botão que ficou por rebentar e perde 
a sua doçura de seiva e de sangue. 

O sol que cai e cai eternamente 
cansou-se de a beijar… E o outono. 
Pai, nada podem teus olhos doces. 

Escutarei de noite as tuas palavras: 
… menino, meu menino… 

E na noite imensa 
com as feridas de ambos seguirei. 

 

Pablo Neruda, Crepusculário 

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Melisanda

pablo neruda

Seu corpo é uma hóstia fina, mínima e leve,
Tem os azuis dos olhos e as mãos da neve.

E o bosque das arvores parecem-se congelados,
E os pássaros que estão neles estão cansados.

Suas tranças ruivas tocam a água docemente
Como dos braços de ouro brotados da fonte.

Zumbe o vôo perdido das corujas cegas
Melisanda se põem de joelhos – e reza.

As árvores se inclinam até tocar a sua frente,
Os pássaros se mudam na tarde dolente.

Melisanda, a doce, chora junto à fonte.

 

Pablo Neruda, Pelleas e Melisanda 

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Inicial

pablo neruda

O dia não é hora por hora.
É dor por dor,
o tempo não se dobra,
não se gasta,
mar, diz o mar,
sem trégua,
terra, diz a terra,
o homem espera.
E só
seu sino
está ali entre os outros
guardando em seu vazio
um silêncio implacável
que se repartirá
quando levante sua língua de metal
onda após onda.

De tantas coisas que tive,
andando de joelhos pelo mundo,
aqui, despido,
não tenho mais que o duro meio-dia
do mar, e um sino.

Eles me dão sua voz para sofrer
e sua advertência para deter-me.
Isto acontece para todo o mundo,
continua o espaço.

E vive o mar.

Existem os sinos.

 

Pablo Neruda, Últimos Poemas – o Mar e os Sinos

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Regressando

pablo neruda

Eu tenho tantas mortes de perfil
que por isso não morro,
sou incapaz de fazê-lo,
me buscam e não me acham
e saio com o que quero,
com meu pobre destino
de cavalo perdido
nos porteiros solitários
do sul do Sul da América
— sopra um vento de ferro,
as árvores se dobram
desde seu nascimento,
devem beijar a terra,
a planície —
chega depois a neve
feita de mil espadas
que nunca terminam.
Eu tenho regressado
de onde estarei,
desde amanhã Sexta,
eu regressei
com todos os meus sinos
e fiquei plantado
procurando a pradaria,
beijando terra amarga
como o arbusto dobrado.
Porque é obrigatório
obedecer ao inverno,
deixar crescer o vento
também dentro de ti,
até que cai a neve,
unem-se o hoje e o dia,
o vento .e o passado,
cai o frio,
ao fim estamos sozinhos,
por fim nos calaremos.
Obrigado.

 

Pablo Neruda, Últimos Poema (O mar e os sinos)

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Antes de amar-te

pablo neruda

Antes de amar-te, amor, nada era meu:
vacilei pelas ruas e as coisas:
nada contava nem tinha nome:
o mundo era do ar que esperava.

E conheci salões cinzentos,
túneis habitados pela lua,
hangares cruéis que se despediam,
perguntas que insistiam na areia.

Tudo estava vazio, morto e mudo,
caído, abandonado e decaído,
tudo era inalienavelmente alheio,

tudo era dos outros e de ninguém,
até que tua beleza e tua pobreza
de dádivas encheram o outono.

 

Pablo Neruda, Cem Sonetos de Amor

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Só o homem

pablo neruda

Eu atravessei as hostis
cordilheiras,
entre as árvores passei a cavalo.
O húmus deixou
no chão
sua alfombra de mil anos.

As árvores se tocam na altura,
na unidade trêmula.
Embaixo, escura é a selva.
Um vôo curto, um grito
a atravessam,
os pássaros do frio,
os zorros de elétrica cauda,
uma grande folha que tomba,
e meu cavalo pisa o brando
leito da árvore dormida,
mas sob a terra

as árvores de novo
se entendem e se tocam.
A selva é uma só,
um só grande punhado de perfume,
uma só raiz sob a terra.
As puas me mordiam,
as duras pedras feriam meu cavalo,
o gelo ia buscando sob minha roupa rasgada
meu coração para cantá-lo e adormecê-lo.
Os rios que nasciam
diante de meus olhos desciam velozes
e queriam matar-me.
De repente uma árvore ocupava o caminho
como se tivesse
andado e então
a houvesse derrubado
a selva, e ali estava
grande como mil homens,
cheia de cabeleiras,
pululada de insetos,
apodrecida pela chuva,
mas do fundo da morte
queria deter-me.

Eu saltei a árvore,
quebrei-a com o machado,
acariciei suas folhas formosas como mãos,
toquei as poderosas
raízes que muito mais que eu
conheciam a terra.
Eu passei sobre a árvore,
cruzei todos os rios,
a espuma me levava,
as pedras me enganavam,
o ar verde que criava
joias a cada minuto
atacava minha fronte,
queimava minhas pestanas.
Atravessei as altas cordilheiras
porque comigo um homem,
outro homem, um homem
ia comigo.
Não vinham as árvores,
não ia comigo a água
vertiginosa que quis matar-me,
nem a terra espinhosa.
Só o homem,
só o homem estava comigo.
Não as mãos da árvore,
formosas como rostos, nem as graves
raízes que conhecem a terra
me ajudaram.
Só o homem.
Não sei como se chama.
Era tão pobre como eu, tinha
olhos como os meus e com eles
descobria o caminho
para que outro homem passasse.
E aqui estou.
Por isso existo.

Creio
que não nos juntaremos na altura.
Creio
que sob a terra nada nos espera,
mas sobre a terra
vamos juntos.
Nossa unidade está sobre a terra.

Pablo Neruda, As Uvas e o Vento

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Regresso

pablo neruda

Ardente é voltar à espuma que acossa minha casa, ao vazio
que deixa o oceano depois de entregar sua carreta de trovões,
tocar outra vez com o sangue a rajada de frio e salmoura
que morde a beira do Chile aventando a areia amarela.

É azul regressar à terra escolhida durante o combate,
levantar a bandeira de um homem sem reino
e esperar da luz uma rede que aprisione a trêmula prata
dos peixes escuros que povoam o pélago puro.

É eterno comer outra vez com o vinho ancestral no copo
a carne enrolada, os tomates de Janeiro com a linguiça,
a pimenta cuja fresca fragrância te ataca e te morde,
e a esta hora de sol as humitas de sal e delícia
desenroladas de suas folhas de ouro como virgens no sacrifício.

Pablo Neruda, A Barcarola

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Para o meu coração…

pablo neruda

Para o meu coração basta o teu peito, 
para a tua liberdade as minhas asas. 
Da minha boca chegará até ao céu 
o que dormia sobre a tua alma. 

És em ti a ilusão de cada dia. 
Como o orvalho tu chegas às corolas. 
Minas o horizonte com a tua ausência. 
Eternamente em fuga como a onda. 

Eu disse que no vento ias cantando 
como os pinheiros e como os mastros. 
Como eles tu és alta e taciturna. 
E ficas logo triste, como uma viagem. 

Acolhedora como um velho caminho. 
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas. 
Eu acordei e às vezes emigram e fogem 
pássaros que dormiam na tua alma. 

Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada

Pablo Neruda

Pablo Neruda – Não estejas longe de mim um dia que seja

pablo neruda

Não estejas longe de mim um dia que seja, porque, 
porque, não sei dizê-lo, é longo o dia, 
e estarei à tua espera como nas estações 
quando em algum sitio os comboios adormeceram. 

Não te afastes uma hora porque então 
nessa hora se juntam as gotas da insónia 
e talvez o fumo que anda à procura de casa 
venha matar ainda meu coração perdido. 

Ai que não se quebre a tua silhueta na areia, 
ai que na ausência as tuas pálpebras não voem: 
não te vás por um minuto, ó bem-amada, 

porque nesse minuto terás ido tão longe 
que atravessarei a terra inteira perguntando 
se voltarás ou me deixarás morrer. 

Pablo Neruda, Cem Sonetos de Amor