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Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Soneto a Katherine Mansfield

vinicius de moraes

O teu perfume, amada – em tuas cartas
Renasce, azul… – são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou… nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto! … e a primavera
Vem já tão próxima! … (Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.

Vinicius de Moraes, Livro de Sonetos

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Ária para assovio

vinicius de moraes

Inelutavelmente tu
Rosa sobre o passeio
Branca! e a melancolia
Na tarde do seio

As cássias escorrem
Seu ouro a teus pés
Conheço o soneto
Porém tu quem és?

O madrigal se escreve:
Se é do teu costume
Deixa que eu te leve

(Sê… mínima e breve
A música do perfume
Não guarda ciúme)

Vinicius de Moraes, Livro de Soneto

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – O verbo no infinito

vinicius de moraes

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito…

Vinicius de Moraes, Para viver grande amor

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Introspecção

vinicius de moraes

Nuvens lentas passavam
Quando eu olhei o céu.
Eu senti na minha alma a dor do céu
Que nunca poderá ser sempre calmo.

Quando eu olhei a árvore perdida
Não vi ninhos nem pássaros.
Eu senti na minha alma a dor da árvore
Esgalhada e sozinha
Sem pássaros cantando nos seus ninhos.

Quando eu olhei minha alma
Vi a treva.
Eu senti no céu e na árvore perdida
A dor da treva que vive na minha alma.

Vinicius de Moraes, O Caminho para a Distância

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – O terceiro filho

vinicius de moraes

Em busca dos irmãos que tinham ido
Eu parti com pouco ouro e muita bênção
Sob o olhar dos pais aflitos.
Eu encontrei os meus irmãos
Que a ira do Senhor transformou em pedra
Mas ainda não encontrei o velho mendigo
Que ficava na encruzilhada do bom e do mau caminho
E que se parecia com Jesus de Nazaré…

Vinicius de Moraes, O Caminho para a Distância

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Místico

vinicius de moraes

O ar está cheio de murmúrios misteriosos
E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…
Tudo está cheio de ruídos sonolentos
Que vêm do céu, que vêm do chão
E que esmagam o infinito do meu desespero.

Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre
Eu sinto a luz desesperadamente
Bater no fosco da bruma que a suspende.
As grandes nuvens brancas e paradas –
Suspensas e paradas
Como aves solícitas de luz –
Ritmam interiormente o movimento da luz:
Dão ao lago do céu
A beleza plácida dos grandes blocos de gelo.

No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto
Há todo um amor à divindade.
No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto
Há todo um amor ao mundo.
No espírito que eu tenho embebido das coisas do alto
Há toda uma compreensão.

Almas que povoais o caminho de luz
Que, longas, passeais nas noites lindas
Que andais suspensas a caminhar no sentido da luz
O que buscais, almas irmãs da minha?
Por que vos arrastais dentro da noite murmurosa
Com os vossos braços longos em atitude de êxtase?
Vedes alguma coisa
Que esta luz que me ofusca esconde à minha visão?
Sentis alguma coisa
Que eu não sinta talvez?

Por que as vossas mãos de nuvem e névoa
Se espalmam na suprema adoração?
É o castigo, talvez?
Eu já de há muito tempo vos espio
Na vossa estranha caminhada.
Como quisera estar entre o vosso cortejo
Para viver entre vós a minha vida humana…
Talvez, unido a vós, solto por entre vós
Eu pudesse quebrar os grilhões que vos prendem…

Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas
Porque eu também estou acorrentado
E nem vos passa, talvez, a idéia do auxílio.
Eu estou acorrentado à noite murmurosa
E não me libertais…
Sou bem melhor que vós, almas cheias de humildade.
Solta ao mundo, a minha alma jamais irá viver convosco.

Eu sei que ela já tem o seu lugar
Bem junto ao trono da divindade
Para a verdadeira adoração.

Tem o lugar dos escolhidos
Dos que sofreram, dos que viveram e dos que compreenderam.

Vinicius de Moraes, O Caminho para a distância 

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Garota de Ipanema

vinicius de moraes

OLHA que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, a menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
Caminho do mar…
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado
É mais que um poema
É a coisa mais linda
Que eu já vi passar..

Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha…

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo
Se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor…

Vinicius de Moraes, Antologia Poética 

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – A Mulher que passa

vinicius de moraes

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
(…)
Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
(…)
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinicius de Moraes, Antologia Poética 

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Ausência

vinicius de moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei… tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes, Antologia Poética 

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Soneto de Quarta-feira de cinzas

vinicius de moraes

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

Vinicius de Moraes, Antologia Poética

Baden Powell Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes, Baden Powell – Samba da Bênção

vinicius de moraes

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Senão é como amar uma mulher só linda
E daí?
Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado, companheiro
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu e assinado embaixo
Deus, e com firma reconhecida
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba

Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinícius De Moraes
Poeta e diplomata
O branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta, todas as minhas mágoas de amor
A bênção, sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antônio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido, que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra, parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento e ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo, que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos, que não és um só, és tantos como
Tantos como o meu Brasil De Todos Os Santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá, a bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus

Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
(Ele é negro demais no coração)

Vinicius de Moraes, Baden Powell – 1967

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – O Poeta

vinicius de moraes

Olhos que recolhem
Só tristeza e adeus
Para que outros olhem
Com amor os seus.

Mãos que só despejam
Silêncios e dúvidas
Para que outras sejam
Das suas, viúvas.

Lábios que desdenham
Coisas imortais
Para que outros tenham
Seu beijo demais.

Palavras que dizem
Sempre um juramento
Para que precisem
Dele, eternamente.

Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Carta aos puros

vinicius de moraes

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra…
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Místico

vinicius de moraes

O ar está cheio de murmúrios misteriosos
E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…
Tudo está cheio de ruídos sonolentos
Que vêm do céu, que vêm do chão
E que esmagam o infinito do meu desespero.

Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre
Eu sinto a luz desesperadamente
Bater no fosco da bruma que a suspende.
As grandes nuvens brancas e paradas —
Suspensas e paradas
Como aves solícitas de luz —
Ritmam interiormente o movimento da luz:
Dão ao lago do céu
A beleza plácida dos grandes blocos de gelo.

No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto
Há todo um amor à divindade.
No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto
Há todo um amor ao mundo.
No espírito que eu tenho embebido das coisas do alto
Há toda uma compreensão.

Almas que povoais o caminho de luz
Que, longas, passeais nas noites lindas
Que andais suspensas a caminhar no sentido da luz
O que buscais, almas irmãs da minha?
Por que vos arrastais dentro da noite murmurosa
Com os vossos braços longos em atitude de êxtase?
Vedes alguma coisa
Que esta luz que me ofusca esconde à minha visão?
Sentis alguma coisa
Que eu não sinta talvez?
Porque as vossas mãos de nuvem e névoa
Se espalmam na suprema adoração?
É o castigo, talvez?

Eu já de há muito tempo vos espio
Na vossa estranha caminhada.
Como quisera estar entre o vosso cortejo
Para viver entre vós a minha vida humana…
Talvez, unido a vós, solto por entre vós
Eu pudesse quebrar os grilhões que vos prendem…

Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas
Porque eu também estou acorrentado
E nem vos passa, talvez, a ideia do auxílio.
Eu estou acorrentado à noite murmurosa
E não me libertais…
Sou bem melhor que vós, almas cheias de humildade.
Solta ao mundo, a minha alma jamais irá viver convosco.

Eu sei que ela já tem o seu lugar
Bem junto ao trono da divindade
Para a verdadeira adoração.

Tem o lugar dos escolhidos
Dos que sofreram, dos que viveram e dos que compreenderam.

 

Vinicius de Moraes, O caminho para a distância, 

Rio de Janeiro , 1933

Vinicius de Moraes

Vinícius de Moraes – O Filho que eu quero ter

É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer

Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter

Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim

Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim

Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu

E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus

Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter

Vinícius de Moraes, O pequeno livro das grandes emoções, UNESCO 2009.