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Wisława Szymborska

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Elogio à irmã

Wisława Szymborska

Minha irmã não escreve poemas
e acho que nem vai de repente começar a escrever poemas.
Puxou isso da nossa mãe, que não escrevia poemas,
e do nosso pai, que também não escrevia poemas.
Sob o teto de minha irmã me sinto segura:
o marido de minha irmã por nada no mundo escreveria
poemas.
E embora isso soe repetitivo como uma litania,
nenhum dos nossos parentes se ocupa em escrever poemas.

Nas gavetas de minha irmã não existem poemas antigos,
nem na sua bolsa, poemas recém-escritos.
E quando minha irmã me convida para almoçar,
sei que não tenciona ler poemas para mim.
Faz sopas deliciosas sem premeditação.
E não derrama café sobre manuscritos.

Em muitas famílias ninguém escreve poemas,
mas se isso acontece — é raro ficar numa só pessoa.
Às vezes a poesia desce em cascatas pelas gerações,
criando turbilhões perigosos nos sentimentos mútuos.

Minha irmã pratica uma razoável prosa falada,
e toda a sua obra se limita a postais escritos nas férias,
cujo texto promete o mesmo todo ano:
que ao voltar
tudo
tudo
tudinho ela vai contar.

Wisława Szymborska, Um amor feliz

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Sorrisos

Wisława Szymborska

Com mais esperança o mundo vê do que ouve.
Os estadistas precisam sorrir.
O sorriso significa que não perdem o ânimo.
Mesmo o jogo sendo complexo, os interesses, contrastantes,
o resultado, incerto — sempre consola
uma dentição branca e calorosa.

Precisam mostrar uma cara amigável
na pista do aeroporto e na sala de conferência.
Mover-se com energia, parecer alegres.
Para esse, um cumprimento, para aquele, um aceno.
Um rosto sorridente é muito necessário
para as objetivas e as multidões.

A odontologia a serviço da diplomacia
garante um resultado espetacular.
Caninos de boa vontade, incisivos aquiescentes
não podem faltar quando a situação pesa.
Nossos tempos ainda não são tão serenos
para que nos rostos se estampe uma tristeza comum.

A humanidade fraterna, segundo os sonhadores,
transformará a terra no país do sorriso.
Duvido. Os estadistas, neste caso,
não precisariam sorrir o dia inteiro.
Só às vezes: porque é primavera, porque é verão,
sem tensão nervosa e sem pressa.
A essência humana é triste por natureza.
Por ela espero e desde já me alegro.

Wisława Szymborska, Um amor feliz

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Nada duas vezes

Wisława Szymborska

Nada acontece duas vezes
nem acontecerá. Eis nossa sina.
Nascemos sem prática
e morremos sem rotina.

Mesmo sendo os piores alunos
na escola deste mundão,
nunca vamos repetir
nenhum inverno nem verão.

Nem um dia se repete,
não há duas noites iguais,
dois beijos não são idênticos,
nem dois olhares tais quais.

Ontem quando alguém falou
o teu nome junto a mim
foi como se pela janela aberta
caísse uma rosa do jardim.

Hoje que estamos juntos,
o nosso caso não medra.
Rosa? Como é uma rosa?
É uma flor ou é uma pedra?

Por que você tem, má hora,
que trazer consigo a incerteza?
Você vem – mas vai passar.
Você passa – eis a beleza.

Sorridentes, abraçados
tentaremos viver sem mágoa,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas d’água.

Wisława Szymborska, Um noite feliz

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Impressões do teatro

Wisława Szymborska

Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato:
o ressuscitar dos mortos das cenas de batalha,
o ajeitar das perucas e dos trajes,
a faca arrancada do peito,
a corda tirada do pescoço,
o perfilar-se entre os vivos
de frente para o público.

As reverências individuais e coletivas:
a mão pálida sobre o peito ferido,
as mesuras da suicida
o acenar da cabeça cortada.

As reverências em pares:
a fúria dá o braço à brandura,
a vítima lança um olhar doce ao carrasco,
o rebelde caminha sem rancor ao lado do tirano.

O pisar na eternidade com a ponta da botina dourada.
A moral varrida com a aba do chapéu.
A incorrigível disposição de amanhã começar de novo.

A entrada em fileira dos que morreram muito antes,
nos atos três e quatro, ou nos entreatos.
A volta milagrosa dos que sumiram sem vestígios.

Pensar que, pacientes, esperavam nos bastidores
sem tirar os trajes,
sem remover a maquiagem,
me comove mais que as tiradas da tragédia.

Mas o mais sublime é o baixar da cortina
e o que ainda se avista pela fresta:
aqui uma mão se estende para pegar as flores,
acolá outra apanha a espada caída.
Por fim uma terceira mão, invisível,
cumpre o seu dever:
me aperta a garganta.

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Álbum

Wisława Szymborska

Ninguém na família nunca morreu de amor.
O que passou, passou, mas nada que alimente um mito.
Romeus tísicos? Julietas diftéricas?
Alguns até atingiram uma idade senil.
Nenhuma vítima de falta de resposta
a uma carta manchada de lágrimas!
Ao fim e ao cabo sempre aparecia algum vizinho
de pincenê carregando um buquê.
Nunca ninguém sufocou num armário estiloso
porque o marido da amante voltou de repente!
Nenhuma mantilha, babado ou fita
nunca impediu ninguém de aparecer na foto.
E nunca na alma o Bosch infernal!
E nunca com uma pistola pelo quintal!
(Faleceram de bala na cabeça, mas por outros motivos
e em macas de campanhas.)
Mesmo essa de coque extático
e olheiras fundas como depois de uma folia
se foi em meio a uma grande hemorragia
mas não para ti, dançarino, e não com pena.
Talvez alguém muito antes do daguerreótipo —
mas desses no álbum, nenhum, que eu tenha sabido.
As tristezas se desfaziam em risos, corriam os dias
e eles consolados sumiam-se de gripe.

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Instante

Wisława Szymborska

Caminho pela encosta de uma colina verdejante.
Grama, florezinhas na grama,
como numa gravura para crianças.
O céu nevoento já azulando.
A vista de outras colinas se amplia em silêncio.

Como se aqui não tivesse havido cambrianos e silurianos,
rochas rosnando uma para a outra,
abismos elevados,
noites em chamas
e dias em nuvens de escuridão.

Como se por aqui não tivessem se movido as planícies
em delírios febris,
calafrios gelados.

Como se só alhures tivessem fervilhado os mares
e rompido as margens dos horizontes.

São nove e trinta, hora local.
Tudo no lugar e em assente concórdia.
No vale, um riacho pequeno como riacho pequeno.
Um caminho em forma de um caminho desde sempre para sempre.

Um bosque simulando um bosque pelos séculos dos séculos, amém,
e no alto, pássaros em voo no papel de pássaros em voo.
Até onde a vista alcança, reina aqui o instante.
Um daqueles instantes terrenos
que se pede que durem.

Wisława Szymborska, Um dia feliz

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Muito divertido

Wisława Szymborska

Anseios de felicidade
anseios de verdade
anseios de eternidade,
olhem só!

Mal distinguiu o sono do despertar,
mal deduziu que ele é ele,
mal talhou em mão a antiga barbatana
pederneira e foguete,
fácil de se afogar numa colher de oceano,
tão pouco divertido que nem diverte o vazio,
só vê com os olhos,
só ouve com os ouvidos,
o recorde de sua fala é o modo condicional,
com a razão incrimina a razão,
em uma palavra: quase ninguém,
mas a cabeça cheia de liberdade, onisciência e o ser
acima da carne insensata,
olhem só!

Pois afinal parece existir,
aconteceu de verdade
sob uma das estrelas provincianas.
Vivaz e bem ativo lá do seu jeito.
Para uma reles degeneração do cristal —
mui seriamente perplexo.
Para uma infância difícil pelas necessidades do rebanho —
nada mal como indivíduo.
Olhem só!

Só um pouco adiante, adiante ainda um instante,
talvez o tempo do piscar de uma galáxia pequenina!
Que finalmente grosso modo se revele
quem ele será, já que é.
E é — obstinado.
Obstinado, deve-se admitir, e muito.
Com essa argola no nariz, nessa toga, nesse suéter.
Seja como for, divertido.
Pobre-diabo.
Uma pessoa de verdade.

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Noite

Wisława Szymborska

Mas o que foi que o Isaac fez?
seu padre me diga.
Quebrou a vidraça do vizinho?
Rasgou a calça nova que usava
quando pulou a cerca de ripa?
Roubou um lápis?
Enxotou as galinhas?
Colou na prova?

Os adultos que durmam
um sono tolo assim,
esta noite
eu preciso vigiar até a aurora.
A noite se cala,
mas se cala contra mim,
escura
como o fervor de Abraão.

Onde vou me esconder,
quando em mim pousar
o olhar bíblico de Deus
como pousou em Isaac?
Antigos feitos se quiser
Deus pode ressuscitar.
Por isso gelada de medo
cubro a cabeça com o cobertor.

Algo logo vai
embranquecer diante da janela,
encher o quarto com o zumbido
de um pássaro ou do vento.
Mas não há nenhum pássaro
de asas grandes como aquelas,
e nem vento
de camisa assim tão longa.

Deus vai fingir
que voou para dentro por acaso,
que não era para estar realmente ali,
e depois vai levar meu pai
para a cozinha confabular sobre o caso
e com uma grande trombeta lhe soprar ao ouvido.

E quando amanhã bem cedo
meu pai pela estrada me levar,
vou, vou,
enegrecida de ódio.
Em nenhum amor, nenhuma bondade,
vou acreditar,
mais indefesa
do que as folhas de novembro.
Nem confiar,
de nada vale a confiança.
Nem amar,
carregar um coração vivo no peito.
Quando acontecer o que tem que acontecer,
quando acontecer,
vai me bater um fungo seco
em vez do coração.

Deus espera
e da sacada das nuvens espia
para ver se alta e bela
queima a fogueira
e verá como
se morre de teimosia,
porque vou morrer,
não vou deixar que me salve!

Desde aquela noite
além dos limites de um sono malsão,
desde aquela noite
além dos limites da solidão,
Deus começou
pouco a pouco
devagarinho
a mudança
do literal
para o metafórico.

Wisława Szymborska, Um amor feliz

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Gente na ponte

Wisława Szymborska

Estranho planeta e nele essa gente estranha.
Sujeita ao tempo, não o reconhece.
Tem seu jeito de expressar seu desagrado.
Faz pequenas pinturas assim como esta:

Nada especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma canoa forçando seu curso contra a corrente.
Vê-se uma ponte sobre a água e vê-se gente na ponte.
Essa gente claramente apressa o passo,
porque de uma nuvem escura
começou a cair uma bruta chuva.

A questão é que ali nada mais acontece.
A nuvem não muda a cor nem a forma.
A chuva nem aumenta nem cessa.
A canoa navega sem se mover.
A gente na ponte corre
no mesmo lugar de ainda há pouco.

É difícil passar sem um comentário:
Esse não é de modo algum um quadro inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixou-se de levar em conta suas leis.
Foi privado da influência no curso dos eventos.
Foi desrespeitado e insultado.

Por causa de um rebelde
um tal Hiroshige Utagawa,
(um ser que por sinal,
como sói acontecer, faz muito que se foi),
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez seja só uma simples brincadeira,
uma travessura na escala de um par de galáxias,
em todo caso porém
acrescentemos o seguinte:

Tem sido de bom-tom há gerações
ter a obra em alta conta,
deslumbrar-se e comover-se com ela.

Tem aqueles para quem nem isso basta.
Ouvem até o barulho da chuva,
sentem as gotas frias no pescoço e nas costas,
olham a ponte e as pessoas,
como se lá também se vissem,
na mesma corrida que nunca termina
na estrada sem fim, eternamente à frente
e acreditam, na sua desfaçatez,
que de fato é assim.

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Museu

Wisława Szymborska

Há pratos, mas falta apetite.
Há alianças, mas o amor recíproco se foi
há pelo menos trezentos anos.

Há um leque — onde os rubores?
Há espadas — onde a ira?
E o alaúde nem ressoa na hora sombria.

Por falta de eternidade
juntaram dez mil velharias.
Um bedel bolorento tira um doce cochilo,
o bigode pendido sobre a vitrine.

Metais, argila, pluma de pássaro
triunfam silenciosos no tempo.
Só dá risadinhas a presilha da jovem risonha do Egito.

A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a luva.
A bota direita derrotou a perna.

Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.
Minha competição com o vestido continua.
E que teimosia a dele!
E como ele adoraria sobreviver!

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Dois macacos de Bruegel

Wisława Szymborska

É assim meu grande sonho sobre os exames finais:
sentados no parapeito dois macacos acorrentados,
atrás da janela flutua o céu
e se banha o mar.

A prova é de história da humanidade.
Gaguejo e tropeço.

Um macaco, olhos fixos em mim, ouve com ironia,
o outro parece cochilar —
mas quando à pergunta se segue o silêncio,
me sopra
com um suave tilintar de correntes.

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Efígie

Wisława Szymborska

Se os eleitos dos deuses morrem cedo,
o que fazer do resto da vida?
A velhice é como um abismo
já que a juventude é o cume.

Daqui não saio.
Continuarei jovem ainda que numa perna só.
Com bigodes fininhos
como o guincho de um rato
me agarro ao ar.
Nessa posição renasço continuamente.
Não conheço outra arte.

Mas serei sempre eu:
as luvas mágicas,
na lapela a roseta da primeira mascarada,
o falsete dos manifestos juvenis,
o rosto do sonho da costureira com um crupiê,
os olhos que eu gostava de pintar retirados
e de espalhá-los como ervilhas de uma fava,
pois vendo isso tremiam as coxas mortas
da rã pública.

Espantem-se também vocês.
Espantem-se, por cem barris de Diógenes,
que eu o venço em ideias.
Rezem
o recomeço eterno.
Isto que seguro nos dedos
são aranhas que mergulho na tinta nanquim
e atiro na tela.
Estou no mundo outra vez.
Floresce um novo umbigo
na barriga do artista.

Wisława Szymborska, Para o meu coração num domingo

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Bebendo um vinho

Wisława Szymborska

Olhou, me deu mais beleza
e eu a tomei como minha.
Feliz, ingeri uma estrela.

Permiti que me inventasse
à semelhança do reflexo
nos seus olhos. Danço, danço
em montes de asas súbitas.

A mesa é mesa, o vinho é vinho,
numa taça que é taça,
e cinzas são cinzas no cinzeiro cinza.
Já eu sou imaginária,
incrivelmente imaginária,
imaginária até a medula.

Falo do que ele quer: das formigas
que morrem de amor sob uma
constelação de dentes-de-leão.
Juro que uma rosa branca,
regada com vinho, canta.

Rio, inclino a cabeça
com cuidado como a conferir
uma invenção. Danço, danço
na minha pele espantada,
no abraço que me concebe.

Eva da costela, Vênus da espuma,
Minerva da cabeça de Júpiter
eram mais reais.

Quando ele não me olha
procuro o meu reflexo
na parede. E vejo só
um prego do qual tiraram um quadro.

Wisława Szymborska, Para meu coração num domingo

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Sem título

Wisława Szymborska

Ficaram tão sozinhos,
tão sem nenhuma palavra
e em tal desamor, que um milagre terão merecido —
um raio das altas nuvens, uma petrificação.
Dois milhões de cópias de mitos gregos antigos,
mas para ele e para ela não há salvação.

Se alguém ao menos parasse na porta
se algo, ainda que por instantes, surgisse, sumisse,
divertido, triste, de algum lugar, de lugar algum,
despertando o riso ou o medo, não importa.

Mas nada vai acontecer. Nenhuma inesperada
inverossimilhança. Como num drama burguês a ação
vai seguir até o fim o roteiro da separação,
e no céu nenhuma fenda será avistada.

Com a parede imóvel atrás,
um do outro compadecido,
detêm-se diante do espelho que traz
somente os reflexos conhecidos.

O reflexo de duas pessoas, nada mais.
A Matéria está alerta.
Em seus tamanhos variados
na terra e no céu e pelos lados
vigia os destinos naturais
— como se de uma corça repentina neste quarto
devesse ruir o Universo.

Wisława Szymborska, Para meu coração num domingo

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska – Ópera bufa

Wisława Szymborska

Primeiro passará o nosso amor,
depois cem, duzentos anos,
depois nos encontraremos de novo:

um casal de comediantes,
os favoritos do público,
vai nos representar no teatro.

Uma pequena farsa com canções,
um pouco de dança, muito riso,
uma boa comédia de costumes
e aplausos.

Você irresistivelmente cômico
nesse palco, com esse ciúme
e essa gravata.

Minha cabeça virada,
meu coração e coroa,
o coração tolo rebentando
e a coroa despencando.

Vamos nos encontrar,
afastar, a sala rindo sem parar,
e sete rios, sete montes
entre nós imaginar.

E como se não bastassem
os fracassos e as dores da vida
— nos feriremos com palavras.

Depois faremos mesuras
e com a farsa terminada,
o público irá dormir
depois de muita risada.

Eles vão viver contentes,
o amor vão amansar,
o tigre vai comer nas suas mãos.

E nós sempre assim desse jeito,
nós de barretes com guizos,
com seu tinido bárbaro
nos nossos ouvidos.

Wisława Szymborska, Um amor feliz – Poemas