Estou vendo aquele caminho
cheiroso da madrugada:
pelos muros, escorriam
flores moles da orvalhada;
na cor do céu, muito fina,
via-se a noite acabada.
Estou sentindo aqueles passos
rente dos meus e do muro.
As palavras que escutava
eram pássaros no escuro…
Pássaros de voz tão clara,
voz de desenho tão puro!
Estou pensando na folhagem
que a chuva deixou polida:
nas pedras, ainda marcadas
de uma sombra umedecida.
Estou pensando o que pensava
nesse tempo a minha vida.
Estou diante daquela porta
que não sei mais se ainda existe…
Estou longe e fora das horas,
sem saber em que consiste
nem o que vai nem o que volta…
sem estar alegre nem triste,
sem desejar mais palavras
nem mais sonhos, nem mais vultos,
olhando dentro das almas,
os longos rumos ocultos,
os largos itinerários
de fantasmas insepultos…
– itinerários antigos,
que nem Deus nunca mais leva.
Silêncio grande e sozinho,
todo amassado com treva,
onde os nossos giram
quando o ar da morte se eleva.
Cecilia Meireles, Viagem
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