Cora Coralina

Cora Coralina – Estória do aparelho azul-pombinho

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Minha bisavó – que Deus a tenha em bom lugar –
inspirada no passado
sempre tinha o que contar.
Velhas tradições. Casos de assombração.
Costumes antigos. Usanças de outros tempos.
Cenas da escravidão.
Cronologia superada
onde havia bangüês.
Mucamas e cadeirinhas.
Rodas e teares. Ouro em profusão,
posto a secar em couro de boi.
Crioulinho vigiando de vara na mão
pra galinha não ciscar.
Romanceiro. Estórias avoengas…
Por sinal que uma delas embalou minha infância.

Era a estória de um aparelho de jantar
que tinha sido encomendado de Goiás
através de uma rede de correspondentes
como era norma, naquele tempo.
Encomenda levada numa carta
em nobre estilo amistoso-comercial.
Bem notada. Fechada com obreia preta.

Carta que foi entregue de mão própria
ao correspondente na Corte
que tinha morada e loja de ferragem
na Rua do Sabão.
O considerado lusitano – metódico e pontual –,
o passou para Lisboa.
Lisboa passou para Luanda.
Luanda no usual
passou para Macau.
Macau se entendeu com mercadores chineses.

E um fabricante-loiceiro,
artesão de Cantão,
laborou o prodígio (no dizer de minha bisavó).

Um aparelho de jantar – 92 peças.
Enorme. Pesado, lendário.
Pintado, estoriado, versejado,
de loiça azul-pombinho.
Encomenda de um senhor cônego
de Goiás
para o casamento de seu sobrinho e afilhado
com uma filha de minha bisavó.

O cônego-tio e padrinho
pelo visto, relatado,
fazia gosto naquele matrimônio.
E o aparelho era para as bodas contratadas.
Um carro de boi –
15 juntas, 30 bois –
bem fornido e rejuntado
para viagem longa,
partiu de Goiás, no século passado,
do meado, pouco mais.
Levava seis escravos escolhidos
e um feitor de confiança.
Mantimentos para a viagem.
E mais, oitavas de ouro,
disfarçadas no fundo de um berrante,
para os imprevistos da delonga.

E o antigo carro
por ano e meio quase
rodou, sulcou, cantou e levantou poeira
rechinando
por caminhos e atalhos,
vilas e cidades, campos, sarobais.
Atravessou rios em balsas.
Vadeou lameiros, tremedais.
Varou Goiás – fim de mundo.
Cortou o sertão de Minas.
O planalto de São Paulo.

Foi receber o aparelho e mais sedas e xailes-da-índia
em Caçapava –
ponta dos trilhos da Dão Pedro Segundo –
ali por volta de 1860 e tantos.
Durou essa viagem, ir e voltar,
dezesseis meses e vinte e dois dias.
– As bodas em suspenso.

Enquanto se esperava, escravas de dentro
fiavam na roda e urdiam no tear.
Mucamas compenetradas, mestreadas por rica-dona,
sentadas nas esteiras, nos estrados de costura,
desfiavam, bordavam, crivavam,
repolegavam
o bragal de minha avó.
Sinhazinha de catorze anos – fermosura.
Prendada. Faceira.
Muito certa na Doutrina.
Entendida do governo de uma casa
e analfabeta.
Diziam os antigos educadores:
“– Mulher saber ler e escrever não é virtude”.

Afinal, muito esperado,
chegou a Goiás, sem novidades ou peça quebrada,
o aparelho encomendado
através de uma rede de correspondentes.
Embarcado num veleiro,
no porto de Macau.

As bodas marcadas
se fizeram com aparato.
Fartas comezainas.
Vinho do Espinho – Portugal –
da parte do correspondente.
Aparelhos de loiça da China.
Faqueiros e salvas de prata
Compoteiras e copos de cristal.
Na sobremesa minha bisavó exultava…
Figurava uma pinha de iludição.

Toda ela de cartuchos de papel verde calandrado,
cheios de confeitos de ouro em filigrana.
Mimo aos convidados graduados:
Governador da Província,
Cônegos, Monsenhores, Padres-Mestres,
Capitão-Mor.
Brigadeiros. Comendadores.
Juízes e Provedores.
Muita pompa e toda parentela.
Por amor e grandeza desse fasto
– casamento da sinhazinha Honória
com o sinhô-moço Joaquim Luís –
dois velhos escravos, já pintando,
receberam chorando
suas cartas de alforria.

Ficou mais, assentado e prometido
em palavra de rei testemunhado,
que o crioulinho
que viesse ao mundo
com o primogênito do casal
seria forro sem tardança na pia batismal.

E se criaria em regalia
com o senhorzinho,
nato fosse ele, em hora e dia.

Um rebento do casal veio ao mundo
no fim de nove meses.
e na senzala do quintal
nascia de uma escrava
um crioulinho.
Conforme o prometido – libertado
alforriado
na pia batismal.

(Na pia batismal, era, naquele tempo,
forma legal e usual de se alforriar um escravo).
Toda essa estória
por via de um aparelho de loiça da China,
destinado a Goiás.
Laborado de um oleiro, loiceiro de Cantão.
Embarcado num veleiro
no porto de Macau.

Cartas com obreias.
Correspondentes antigos.
Cartuchos de confeitos de ouro.
Alforrias de escravos.
Bodas de meu avô.
Bragal da minha avó.
Roda e tear, marafundas e repolegos.
Coisas do passado…
E – dizia  minha bisavó –
tudo se deu como o contado.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

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