Eucanaã Ferraz

Eucanaã Ferraz – Vem

Porque os dias quebravam contra sua cara, porque
trocara as horas por nada, quis o espinho extremo;
mas, sobre encontrá-lo, ninguém, nada respondia.
Saberia reconhecê-lo em meio a tudo? Algum sinal?
Um cisne gravado na testa? Talvez

bastasse, à distância, atentar nos modos de dobrar
ou desfazer frases um lenço quem sabe, no levar
água à boca, moeda à bolsa, banal, vislumbrasse
um rastro, mesmo sem saber agora, não saberia
nunca?, o que faria do acaso o certo, até que

se manifestasse numa forma inadiável e porque seria
assim avistaria na matéria mínima a sua fábrica,
o fogo que sobreviria contra a indiferença dos dias;
mas as ruas são compridas, era preciso estar mais perto
para perceber; e logo baralhava unhas vozes cabelos

à maneira de uma teia aos pedaços que o fazia adolescente
como um pombo tonto; mesmo sem vestígios, farejava;
o que as costelas dos viadutos escondiam? Ruas becos
subiam-lhe à boca enchendo-o de inocência e desejo;
envenenara-se com o anseio de que a cidade desaguasse

em alguém, não fosse tão só pedras de seus olhos
se ferirem; mais seguro era cegar as vontades; cerrados
os olhos calariam o teatro excessivo dos gestos; talvez
dormisse, mas a insônia vinha branca ácida alta.
Houve uma vez um comandante prussiano

recostado fundo na poltrona cavando com as esporas
de sua bota o mármore da lareira, lembrava,
era mais fácil deixar a solidão crescer no vento
vir ao quadril, lembrava do conto enquanto seus olhos
erravam, esperança em pelo, juízo em vão, fome

de um relance, um fio. Suave, se ainda soubesse, era
beber sem supor alguém após o drinque, gastar-se só,
sem presumir um abraço à saída do cinema, à saída
de sábado, mas ele sacrificaria qualquer ponderação
para persistir no engano de seguir à própria sorte

por mundos que semelhavam estacionamentos
abarrotados de frases moles blogs celulares
fazer amigos impressionar pessoas dicionários
como se fósforos para queimar o tempo o tédio,
saudade de quando não vagava devastado pela

espera, pela espora, dizia o conto, de uma lâmpada
após o labirinto, por aquela presença tão só pressentida
mas que talvez por adivinhada ardia ainda mais; tudo
(um exagero) escarnecia dele, sequioso de que regressasse
quem nem mesmo houvera, Ulisses ou o filho pródigo

caminhando sobre o mar etílico, turbulento. Canções
de amor foram o seu veneno, todas à roda da mesma
víscera, da mesma válvula sentimental, podia senti-la
sem amores nem romances, sangue e bomba só,
como no peito de um bicho que é apenas isso.

Então, exausto, sem nenhum grito, deitou-se sobre
a pedra escura da rua ou da escarpa mais alta da lua
mais miserável e suja e esteve ali, parado, manso,
sem que nada pedisse ao tempo ou pretendesse.
E era só uma noite entre as noites, quando despertou

agitado, deve ter sido assim, pela visão de uns lábios,
vinham acesos, na direção
dos seus.

 

Eucanaã Ferraz, Sentimental

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