Fernando Pessoa

Fernando Pessoa – Quando ela passa

fernando pessoa
image_pdfimage_print

Quando eu me sento à janela
P’los vidros qu’a neve embaça
Vejo a doce imagem d’ela
Quando passa… passa.… passa…

N’esta escuridão tristonha
Duma travessa sombria
Quando aparece risonha
Brilha mais qu’a luz do dia.

Quando está noite ceifada
E contemplo imagem sua
Que rompe a treva fechada
Como um reflexo da lua,

Penso ver o seu semblante
Com funda melancolia
Qu’o lábio embriagante
Não conheceu a alegria

E vejo curvado à dor
Todo o seu primeiro encanto
Comunica-mo o palor
As faces, aos olhos pranto.

Todos os dias passava
Por aquela estreita rua
E o palor que m’aterrava
Cada vez mais s’acentua

Um dia já não passou
O outro também já não
A sua ausência cavou
Ferida no meu coração

Na manhã do outro dia
Com o olhar amortecido
Fúnebre cortejo via
E o coração dolorido

Lançou-me em pesar profundo
Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser n’este mundo
E mais um anjo no céu.

Depois o carro funério
Esse carro d’amargura
Entrou lá no cemitério
Eis ali a sepultura:

Epitáfio.

Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Uma jovem filha da melancolia
O seu viver foi repleto d’amargura
Seu rir foi pranto, dor sua alegria.

Quando eu me sento à janela
P’los vidros qu’a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa… não passa.

Fernando Pessoa, Obra completa de Fernando Pessoa

Você gostou deste poema?

Você Pode Gostar Também

Sem comentários

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.