Guilherme de Azevedo

Guilherme de Azevedo – Velha farsa

Rufa ao longe um tambor. Dir-se-ia ser o arranco
Dum mundo que desaba; aí vai tudo em tropel!
Vão ver passar na rua um velho saltimbanco
E uma fera que dança atada a um cordel.

Ó funâmbulos vis, comediantes rotos,
O vosso riso alvar agrada à multidão!
E quando vós passais o arcanjo dos esgotos
Atira-vos a flor que mais encontra à mão!
Lá vai tudo a correr: são as grotescas danças
Duns velhos animais que já foram cruéis
E agora vão sofrendo os risos das crianças
E os apupos da turba a troco de dez réis.

Conta um velho histrião, descabelado e pálido,
Da fera sanguinária o instinto vil e mau,
E vai chicoteando um urso meio inválido
Que lambe as mãos ao povo e faz jogo de pau.

Depois inclina a face e obriga a que lha beije
A fera legendária olhada com pavor:
E uma deusa gentil, vestida de barege,
Anuncia o prodígio a rufo de tambor!

E as mães erguem ao colo uns filhos enfezados
Que nunca tinham visto a luz dos ouropéis:
E acresce à multidão a turba dos soldados,
— ao hilota da cidade o escravo dos quartéis.

E o funâmbulo grita; impõe qual evangelho
À turba extasiada a grande narração.
E sobre um cão enfermo um orangotango velho
Passeia nobremente os gestos de truão.
Correi de toda a parte, aligeirai o passo,
Deixai a grande lida e vinde à rua ver
As prendas duma fera, as galas dum palhaço,
E um arcanjo que sua e pede de beber!

A tua imagem tens, ó povo legendário
No cômico festim que mal podes pagar,
Pois tu ainda és no mundo o velho dromedário
Que a vara do histrião nas praças faz dançar.

 

Guilherme de Azevedo, A alma nova

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