Joaquim Pessoa – Poema segundo

Tudo nos está contra
quando estamos contra nós mesmos.
O destino é espectacular mas chega
a confundir-nos com tanta dieta de assombro,
tanto fogo ruivo
que chega do passado,
exercitando chamas para atear o presente
e chamuscar o futuro. E, contra nós,
temos a consciência, a ética, e os vestígios
de uma imaginação desenfreada,
palpável mas contraditória.
Depois, vamos crescendo com o que parece,
e “o que parece” é quase sempre muito
menos do que a realidade, essa
brutalidade funda que toma conta
do nosso corpo, enterrando-se
em nós como se fosse
a raiz das lágrimas.
Tudo não é como eu digo, quando digo
sem saber como dizer.
Tal como a poesia-fantasma, apaixonada
por si mesma.
E se, afinal, não chove sobre
a pele lúcida dos poemas,
se o vento que costuma inchar as sílabas
for inventado,
então o poema é magro, não enche,
não preenche, não sacia, é não mais que
o tremoço que espevita o apetite
do olhar. Entre a memória
e o que me faz falta, lá está ele
doendo.
Doendo e sorrindo,
com a dor mansa do afecto, essa
dor que em si guarda todas as coisas
que alguma vez amei.
É por isso que te confundo muitas vezes
com a escrita, quando chegas
sem avisar,
ombros de fascínio, e lábios
mais insinuantes que as capas dos livros.
E tiro-te o retrato, sou agora fotógrafo
de silêncios e de peixes enormes. Evito assim
fotografar o mar que nunca é o mesmo, é
outra coisa sempre. O meu
pensamento sabe brincar ao esconde-esconde
e habituou-se já a analisar os contrários,
os do isto e os daquilo, e os do que eu
antecipo que seja.
Quando digo a minha dor,
já não é a minha dor, é uma alegria enfastiada,
sem fome de azul, sem fome de ti,
alegria que avança pelos meus braços
em conflito,
com um raminho de oliveira,
que faz questão de me oferecer para que possa
brincar também de pomba. E eu,
que sou tão alto como as coisas altas
que gostaria de ser,
espremo turquesas e esmeraldas até
deitarem sangue,
e elevo os olhos para conferir
se Deus ainda ocupa
o seu lugar.


Joaquim Pessoa, Guardar o Fogo