Estive para ser entregue a Deus desde pequeno.
Não em sacrifício, como o frango que a minha avó
ainda mata nas traseiras da casa, golpe certeiro
no pescoço, o sangue a escorrer para a bacia
para que depois se junte ao arroz solto, à noite.
Estive para ser entregue a Deus com a batina
imaculada de um padre, entregue a Nosso Senhor
por oração e valência espiritual, há-de ser este
o menino, Manel, dizia minha avó a meu pai,
cheia de esperança. Estive por ela, pelo meu pai,
que chegou a usar batina no seminário, e por mim,
tal o encanto das coisas sagradas. A minha avó
no pátio a olhar para a entrada da casa dizia, rapaz,
vamos à missa das dez e meia como se ao céu, e eu
aprendiz de feiticeiro a ajudar à missa como gente
grande, juntando as migalhas das hóstias com Deus
Nosso Senhor ao lado. Estive para ser entregue a Deus
e sentia ser esse o meu destino. Ainda hoje, quando
no fim de jantar limpo a banca – a louça na máquina,
a hóstia celebrada no pão nosso de cada dia –, dobro
silencioso o pano da cozinha como um paramento.
Recito: graças e louvores se dêem a todo o momento.
E ouço: ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento.
Jorge Reis-Sá, Pátio
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