Mia Couto – Gaiola

A pluma pensa,
a ave pesa.

Mais leve é o céu
que não sabe voar.

Hoje, porém,
contra plumas e céus,
a gaiola se ergueu
e voou sobre a cidade,
grave e sem gravidade,
rumo às citadinas nuvens.

A gaiola
vingava a saudade
que a asa sentia do pássaro.

E cruzou
o agnóstico céu,
disputando lugares de anjos.

E era um milagre de coisa
profanando o firmamento.

Mas, afinal,
fui eu
e não a gaiola
quem do chão se soltou.

Flutuei
por entre nuvens
como se outra terra pisasse.
Nas alturas,
porém,
a asa, sem pluma,
de vertigem sofreu.

Entendi, então,
o meu voo corrigir.

Mas foi fatal o intento.

Porque o voar de ave
é como alma sem rasura:
sempre sem erro,
sempre segura da precisa altura.

Na aresta do chão
me despenhei,
tombando em cascata de sombra.

Inteiro sobre mim,
com peso de lápide,
um céu confirmava:
todos de si sabem
o lugar e a idade.

Desconhecemos apenas
onde somos eternidade.

Mia Couto, Vagas e lumes