Mia Couto

Mia Couto – Inundar de infância

Hoje acordei sem dia,
a casa sem lar,
a cama sem leito.

Hoje acordei sem mim.

Saí à rua,
para me deixar possuir
pela simples leveza de existir.

Crianças passaram por mim,
aos bandos de espantar,
com folias e desmandos,
nessa fabricação de milagres
que é o absoluto brincar.

Dentro de mim
o universo se dissolveu
e um respirar de céu
em meu peito se inundou.

Seria a Vida,
seria o Tempo sem nostalgia,
ou seria, apenas, a poesia?

Sei que havia um fluir de rio
lavando antiquíssimas dores.

E do cristal de tristeza
que antes me negava o ar,
desse nó de vazio,
voltou a nascer o mar.

Mia Couto, Vagas e lume

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