Mia Couto – O degrau da lágrima

Nasci numa casa com escada. 

Aquela escada, 
dizem, 
nasceu antes da casa. 

O seu motivo 
era o de todas as escadas: 
medo de sermos terra, 
temor de lavas e monstros. 

Alteada sobre os céus 
a casa era mais que um ventre. 
Era um farol. 

Nesse farol sem mar, 
me lembro chorando 
sobre o primeiro degrau. 

Chorar é lá fora, advertia o pai. 
Lágrimas 
murcham aquém da porta: 
esse era o mando. 

A proibição da lágrima 
se somava ao interdito do chão: 
medo dos rios, 
das indomáveis enchentes. 

Ainda hoje 
uma voz antiga, 
dentro de mim, incita: 
aprende do pranto 
o parto das fontes. 

Sempre que chorares, 
nascerás uma outra vez. 

 

Mia Couto, Tradutor de chuvas