Mia Couto

Mia Couto – Prematuros olhos

Muito antes de mim, 
os meus olhos 
andaram a despir o mundo. 

O que era roupa 
tombou num escuro abismo, 
desolada ave sob a chuva. 

E não era roupa, 
era alma de gente, 
sonhos à procura do tempo. 

Debruçada na margem, 
a lavadeira sabe: 
não é da roupa que cuida. 
É o próprio rio que ela lava. 

E no seu ventre, 
onde a luz se ajoelha, 
certa vez se desenroscou 
a trança cega do Tempo. 

Por isso, mãe, 
os meus olhos são teus. 

E eles não servem para ver. 

Apenas para recordar. 

O que antes de ser luz 
foi palavra e corpo. 

 

Mia Couto, Vagas e lumes

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