Mia Couto – Viagem

No caminho 
havia um rio. 
E o rio 
tinha da navalha 
o apurado fio. 
E cortou em dois o mundo. 
Chamei o peixe. 
E o peixe bebeu o rio. 

No céu 
havia nuvens. 
Eram nuvens velhas, cansadas. 
Chamei o pássaro. 
E o pássaro comeu o céu. 

Sobejou, 
sob os pés, a terra 
e a sua imensidão. 
Chamei o tempo. 
E o tempo comeu o chão. 

Sem terra, sem rio, sem céu, 
não me restou 
senão o vislumbrar 
de um sonho. 

E o sonho 
foi ave e peixe, 
foi tempo e foi céu. 
Depois, aos poucos, 
o sonho me devorou a vida. 

E, assim, 
em mim, 
nasceram todas as vidas. 

Mia Couto, Vagas e lumes