Um dia
— não sei quando nem onde —
das névoas cinzentas do futuro,
ele surgirá, envolto em mistério e magia
— o homem que eu amarei.
Não será herói de livro de fantasia,
príncipe russo
actor de cinema
ou milionário com saldo no Banco.
Não.
O homem que eu amarei
será tal qual eu, no fundo.
Suas mãos, como as minhas,
estarão calejadas do dia a dia
e seus olhos terão reflexos de aço
como os meus.
Sua alma será irmã minha
com a mesma angústia e o mesmo amor,
com o mesmo frio ódio e a mesma esperança.
E do seu pescoço estará suspenso, como do meu,
o marfim do mesmo amuleto.
Ah, ele será humano, como eu,
e da mesma seiva generosa.
Completamente humano e verdadeiro
— que só assim eu o poderei amar.
E só será perfeito quanto a nossa condição o permitir,
para que sejamos na vida o que ela nos pedir:
companheiros,
juntos na mesma barricada,
lutando num mesmo ideal.
Ah, sim,
quando a paz descer sobre o campo de luta,
poderei enfim
dar-me completamente.
Minha alma, finalmente,
poderá encher-se como um búzio, da música do luar
e do murmúrio do mar.
E meu corpo adubado de ânsias,
abrir-se-á à charrua do seu desejo,
à semente do seu amor.
Serei então irmã gêmea da Terra,
carregando em mim o mistério da vida,
machamba aberta à chuva benéfica
e ao sol fecundo do seu amor.
E quando em mim se fizer o milagre,
quando do meu grito de morte
surgir a vitória máxima da vida,
ah, então eu estarei completa.
Mas só depois da paz descer sobre o meu campo da luta,
antes disso, não.
Antes, seremos companheiros da mesma obra,
operários construindo o nosso mundo.
Por isso, amor que não conheço,
nada mais me peças enquanto não for terminada a obra.
Enquanto ela durar,
não poderei ser tua completamente,
porque me dei, inteira,
a este sonho que tudo apouca.
Para ti irão apenas os breves momentos de tréguas,
o calor que me sobrar da fogueira de todos.
Mas quando da noite desumana
surgir a manhã que construímos, lado a lado,
quando nossa Mãe África nos estender seus pulsos libertos
quando a calma descer sobre a casa que edificámos,
então seguiremos, na luz clara desse Sol maravilhoso,
nosso destino natural de Homem e Mulher
e dos seus gritos de morte
nossos filhos poderão nascer então,
num mundo de justiça.
………………………………..
Para meu amor futuro, que me completará,
para esse amor distante
escrevi este poema.
Que tu o leias um dia, amor que não conheço,
quando me surgires, embrulhado em mistério,
e minha alma e meu corpo
palpitarem de reconhecimento — és tu!
Que aquele que amarei o leia
e me leia, neste poema que lhe escrevi.
Noémia de Sousa , Sangue Negro
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